Rio Grande do Sul

Coluna

No ano que vem eu não morro

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Jornada Nacional de Combate a Fome e a Pobreza entregou alimentos a centenas de famílias de Londrina, norte do Paraná - Foto: Filipe Barbosali
Confio que juntos faremos bem mais do que se poderia esperar de milhões de sujeitos de sorte

Fim de ano, e com ele aquela ideia de mudança.

Os votos, os propósitos. A confiança de que sou um sujeito de sorte e tudo vai bem porque Deus é brasileiro. Inclusive naqueles casos em que este ano eu morri, e na certeza de que no ano que vem eu não morro.

E a partir daí, as iniciativas.

A(s) festa(s), se possível aquele porre, e as análises de conjuntura apontando as rotas que iremos seguir para construir o futuro.

E é disso que se trata. As análises de conjuntura. Aquelas leituras de tendências que apontam para os movimentos inerciais que dão sentido às ondas onde estamos metidos e que nos arrastam. Aquelas, onde pretendemos surfar ou de onde esperamos saber espernear para fugir, em 2024, e que examinamos daqui com base nos desejos e necessidades, valores e conhecimentos de quem faz a análise de conjuntura.

E como é de esperar, aquelas leituras resultam opostas, apontam caminhos nada a ver entre si quando realizadas por alguém ignorante como eu, ou por alguém bem informado e preocupado com os interesses da maioria, como João Pedro Stédile, ou por pessoas obcecadas pelo próprio umbigo.

Mas, mesmo assim, há um fundamento comum a qualquer avaliação de conjuntura: o que importa é saber o que vêm fazendo aquelas pessoas e grupos que “fazem a diferença” para o que acontecerá em 2024, afetando a todos.

E, portanto, não faz sentido uma projeção que ignore QUEM faz a diferença e suas motivações.

E também não se trata de identificar as pessoas. O João e a Maria, em si, são irrelevantes. O que importa são os grupos, as alianças e os processos que a partir dali desencadeiam. 

No momento atual, em todas as avaliações de conjuntura, tanto naquelas realizadas pelos que se supõem donos do planeta, como na visão dos que lutam pela comida de cada dia, ou o calor, as ameaças de escassez e a necessidade de proteção estão em evidência, ou elas não passam de distrações infantis.

Isso porque, como bem sabemos, confiar na loteria, assim como planejar a fuga para Marte, ou criar ilhas, bunkers e exércitos particulares, estudar chinês, armazenar enlatados, remédios e armas, além de ser para poucos, não trará segurança.

Um mínimo de realismo exige consideração ao fato de que há um processo deletério em andamento. Opera entre nós um mecanismo que não pode ser desprezado e que já revelou sua incompatibilidade com as necessidades da rede vital. E aqui não se trata apenas de um drama humano, nem se resume ao que esperamos para 2024.

As bases da vida estão em erosão acelerada e, como anunciou (Davi) Kopenawa, por nosso modo estúpido de viver, por nossas ações e omissões, o céu está literalmente desabando sobre todos que aqui respiram. 

Mas de que adianta saber isso? Seria um indicativo de que é hora de relaxar e esperar 2024 assumindo que teremos o merecido, como espécie orientada por ecocidas, genocidas, fraticidas e suicidas? É claro que não. Tudo indica que somos apenas um vasto bando de tolos, inocentemente generosos a ponto de nos deixar matar sem perder a confiança nas ações daqueles que “fazem a diferença”.

Afinal, e apesar das evidências acumuladas, acreditamos que nossos representantes, em maioria, se deixarão orientar pelos valores dominantes entre nós e de tudo farão para que possamos viver em paz. No entanto, aí estão as bancadas da bíblia, da bala, da bola, do fuzil e da boiada, negociando nosso sangue no mercado das almas.  

A queda do veto ao Marco Temporal, a aprovação do pacote do veneno, o teto de gastos e o cerco às políticas públicas compensatórias e inclusivas, mostram que o Congresso Nacional ou bem não faz análise de conjuntura orientada pelos valores e direitos humanos, ou está capturado por pessoas inconscientes do caos que se avizinha.

É alarmante observar que isso se repete em todos os níveis e ambientes onde imbecis estufam o peito para se afirmar como mercadorias. São como produtos de ocasião. São resultados da mesma campanha de desinformação que vendeu o mito-mito, a cloroquina, a terra plana, o kit gay, as ameaças do comunismo, e que agora pede paciência na espera por intervenção divina que, na hora final, salvará mansos e justos do apocalipse.

Por quê?

Porque para aqueles que fazem a diferença, e com isso desenham a análise de conjuntura das maiorias, já está claro, desde há muito tempo: a batalha das ideias se faz mais simples através da construção de muros de ignorância tolerante, em nós, relativamente ao que quer que possa estar ocorrendo com os outros e com a casa comum.  

É como se eles validassem que o “nós”, os “outros” e a “casa comum” definissem entidades autônomas, isoladas e independentes. Com necessidades, direitos e deveres tão distintos como aqueles que a hipocrisia, o racismo e a meritocracia elitista pretendem nos fazer crer serem “naturais”. São justificativas funcionais e estão sendo aplicadas como Júlio Cesar recomendou, na linha do “dividir para conquistar”.

E isso vem funcionando.  

Aí estão as grandes mídias e seus anúncios de “eventos extremos” e “soluções extremas” como explicações e justificativas para processos que respondem aos interesses de poucos. Ou não é verdade que os genocídios de Yanomamis e Palestinos, assim como o envenenamento das águas, a seca dos rios, a queima dos biomas, o desencaminhamento de processos metabólicos, as marchas dos refugiados e tudo que se multiplica em sindemia global, está amarrado à causas que respondem aos comandos daqueles a quem permitimos definir o que faz a diferença?

Não é preciso grande esforço para entender que as grandes mídias estão a serviço deste tsunami de ignorância programada que se expressa no avanço das intolerâncias, do racismo, do fascismo e da apatia de todas as vítimas. Eles sabem que o capitalismo não deu certo e não tem como se manter, porque não há sentido na perpetuação das injustiças que promove, nem lógica em sua hipótese de crescimento indefinido em território limitado, com recursos finitos.

Portanto, aí está uma oportunidade real de mudança, que vale uma análise de conjuntura e um propósito de atitudes consequentes para a vida que se desenhará a partir de 2024.

E neste sentido, a grande pergunta seria: o que você pretende fazer em 2024 para mudar o destino que se coloca para nós, os sem bunker, os sem ilha e os sem perspectiva de fugir para Marte?

Ou de outra forma: em 2024 você pretende se assumir como alguém com responsabilidades, capaz de entender seu papel e de se incorporar àqueles que unidos, poderemos fazer a diferença?

Um projeto só: união com vistas a enterrar este modelo de desenvolvimento que opera às avessas, substituindo fascistas, fantoches e mercadorias de aluguel que ocupam espaço nas prefeituras, câmaras de vereadores, Senado e agências públicas. Ir às ruas, cobrar mudanças, apoiar as organizações sociais e valorizar aquelas mídias que, operando como o grilo falante de Pinóquio, lutam por nos chamar à consciência ativa.

Com um projeto, com arte, com fé e poesia, confio que juntos faremos bem mais do que se poderia esperar de milhões de sujeitos de sorte.

Veja análise de conjuntura de João Pedro Stédile:

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko