“Os povos Kaingang, Mbya Guarani, Avá Guarani, Xeta, Charrua e Xokleng, na Região Sul do Brasil, sobreviventes dos massacres promovidos pelo Estado e por particulares, têm, em seus corpos e espíritos, feridas que continuam abertas”, afirma o Conselho Indigenista Missionário em nota sobre o conflito entre lideranças na Terra Indígena Cacique Doble, no noroeste do Rio Grande do Sul, próximo à divisa com Santa Catarina. Os indígenas da reserva vivem sob uma escalada de violência, um clima de guerra, que a entidade analisa sob o viés histórico da ataque à cultura e ao modo de vida originários.
“Os agentes do Estado, através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ao longo do século passado, promoveram a remoção forçada e o confinamento de famílias e comunidades indígenas em espaços ínfimos - nas reservas - verdadeiros campos de concentração e tortura”, diz o texto. A nota lembra ainda que a Constituição de 1988 garantiu direitos aos povos indígenas, mas critica “a negligência governamental e dos órgãos de controle” das últimas décadas, que “possibilitou o aprofundamento das práticas ilegais dos arrendamentos e, em torno dele, fomentou-se também a exclusão, o esbulho territorial e a violência contra famílias indígenas".
:: "É necessário reescrever a história colocando o protagonismo indígena", diz historiador ::
O Ministério dos Povos Indígenas e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) está realizando, desde domingo (10) até hoje (11), uma consulta à comunidade guarani e kaingang, que vive na Terra Indígena Cacique Doble, no noroeste do Rio Grande do Sul, próximo à divisa com Santa Catarina, que tem sido palco de violenta disputa entre grupos indígenas rivais que brigam pela liderança da reserva.
O objetivo é discutir a questão da “representação democrática da comunidade” com os cerca de 815 indígenas que vivem na reserva de 4,4 mil hectares, homologada em 1991 como área da União de usufruto exclusivo indígena.
O conflito na área indígena é antigo, mas intensificou-se em 2022, quando quatro moradores da reserva foram baleados. Na ocasião, três líderes da reserva indígena foram presos e permanecem encarcerados. Recentemente, uma briga generalizada em um evento natalino deixou feridos e 12 pessoas foram hoispitalizadas. Na última segunda-feira (4), uma menina de 13 anos morreu após ser atingida por um projétil durante um tiroteio no interior da terra indígena e outras duas pessoas foram baleadas e hospitalizadas.
::
O grupo que está no poder atualmente arrendou toda a área cultivável da terra indígena, para a produção de grãos como o milho, trigo e, especialmente, a soja. As lideranças determinam quem pode e quem não pode plantar. Há indícios de formação de milícias.
“Nesse contexto, faz-se necessário e urgente, nos termos da legislação vigente, a identificação e a punição de arrendadores e arrendatários e daqueles que promovem ataques às pessoas e seus bens no interior de terras indígenas da região”, diz o Cimi.
Confira a nota na íntegra:
Nota do Conselho Indigenista Missionário - Regional Sul - Arrendamentos e violências em terras Kaingang no Rio Grande do Sul.
As violências contra os povos indígenas têm sido contínuas e brutais ao longo de todo o processo de colonização em nosso país.
O esbulho dos territórios indígenas é sistêmico, afeta de forma generalizada e organizada às comunidades, fragilizando o acesso aos direitos fundamentais à terra e ao seu usufruto exclusivo, destruindo a natureza e seus mananciais hídricos e ecológicos.
Os ambientes socias, econômicos, políticos e culturais existentes no entorno das áreas indígenas são adversos e desencadeiam, nos territórios, insegurança e falta de perspectivas de vida e de futuro.
Os povos Kaingang, Mbya Guarani, Avá Guarani, Xeta, Charrua e Xokleng, na Região Sul do Brasil, sobreviventes dos massacres promovidos pelo Estado e por particulares, têm, em seus corpos e espíritos, feridas que continuam abertas.
Os agentes do Estado, através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ao longo do século passado, promoveram a remoção forçada e o confinamento de famílias e comunidades indígenas em espaços ínfimos - nas reservas - verdadeiros campos de concentração e tortura.
Eles desvirtuaram as formas organizativas dos povos e introduziram estruturas de poder e comando - aos moldes dos regimentos militares - e, através dessa manipulação, buscaram controlar os indígenas e submetê-los aos interesses econômicos. Toda a estratégia estatal foi direcionada à dizimação e à integração dos originários habitantes do Brasil. Não havia alternativa a não ser habituarem-se às práticas dos opressores.
O indigenismo estatal, além de controlar os corpos e as almas, apropriou-se das terras e dos recursos econômicos nelas existentes. Através de ameaças, aprisionamentos, espancamentos e torturas obrigaram os indígenas a trabalharem na derrubada das florestas e na abertura de lavouras, em seguida negociadas com arrendatários.
A Constituição Federal de 1988 rompeu com a lógica integracionista, afastando a tutela e determinando que o Estado passasse a adotar relações de respeito para com os povos indígenas, assegurando-lhes os direitos às diferenças. Garantiu também os direitos às terras tradicionalmente ocupadas como originários, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Com isso, a Constituição assegurou aos povos o usufruto exclusivo das suas terras, definindo como ilegais as práticas dos arrendamentos.
Nas últimas décadas, a negligência governamental e dos órgãos de controle possibilitou o aprofundamento das práticas ilegais dos arrendamentos e, em torno dele, fomentou-se também a exclusão, o esbulho territorial e a violência contra famílias indígenas. Nesse modelo de gestão ilegal das terras tradicionalmente ocupadas, funciona o sistema privado de uso da terra e a estruturação de cacicados cruéis e perversos, que reproduzem as chefias militares no exercício do poder interno. Famílias Kaingang - que vivem nas reservas - encontram-se amedrontadas - em pânico - pelo clima de guerra.
Nesse contexto, faz-se necessário e urgente, nos termos da legislação vigente, a identificação e a punição de arrendadores e arrendatários e daqueles que promovem ataques às pessoas e seus bens no interior de terras indígenas da região.
Concomitante às investigações e responsabilizações penais dos agressores, os órgãos públicos, amparados pela legislação, devem buscar meios administrativos e jurídicos para intervir nas áreas onde há a conflagração dos atos de violência a exemplo do que ocorre, neste período, em Cacique Doble. Torna-se insustentável à vida em ambientes onde a violência impera como norma. Essa prática não é cultural e muito menos se pode justificar as ações de grupos criminosos e milicias armadas - de indígenas e não-indígenas - como se fossem componentes dos costumes e tradições do povo Kaingang.
É indispensável a reflexão, a construção e a implementação de política pública específica e diferenciada de apoio e fomento às comunidades indígenas no Brasil, visando a garantia do direito ao usufruto exclusivo das terras, com enfoque na produção de alimentos e na garantia de renda às famílias indígenas nos seus territórios.
O Cimi Sul se coloca a serviço e no apoio aos povos indígenas pela garantia de seus direitos fundamentais à terra, como um bem a que todos tenham acesso, bem como se posiciona veementemente contra as práticas de esbulho através dos arrendamentos e repudia todas as formas de violência contra a vida e o patrimônio indígena.
Chapecó, SC, 07 de dezembro de 2023.
Conselho Indigenista Missionário - Regional Sul
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira