O dia 2 de dezembro conta uma história fundamental para a cultura brasileira. Nesta data, em 1962, organizado pelo intelectual Edison Carneiro, aconteceu o 1º Congresso Nacional do Samba.
O evento foi realizado no Palácio Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro (RJ). O final do encontro resultou na elaboração da Carta do Samba, documento que levou a assinatura de Edison Carneiro, considerado um dos pioneiros nos estudos sobre cultura popular brasileira a partir da etnologia. Ele foi autor de 11 livros que são referência, até hoje, no tema.
Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Carneiro nasceu no início do século 20, em Salvador (BA) e se tornou referência internacional, principalmente, pelo tour no continente africano que realizou na década de 1960, para países como Senegal e Benin, por exemplo.
“Esse Congresso tinha muita preocupação com a preservação do samba, como uma manifestação tradicional das culturas afrodiaspóricas no Brasil”, explica o professor Luiz Antonio Simas em entrevista ao Brasil de Fato neste Dia Nacional do Samba.
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“A tradição não é estática, a tradição, na verdade, dialoga com o contemporâneo o tempo todo. Então a carta [do Samba] falava disso, chamava a atenção para certos fundamentos do samba”, afirma Simas, vencedor do Prêmio Jabutis, com a obra Dicionário de História Social do Samba, escrita conjuntamente com Nei Lopes, em 2015.
Neste ano, Simas está concorrendo ao prêmio na categoria poesia com o livro Sonetos de birosca e poemas de terreiro.
O escritor começa a entrevista afirmando que "o samba está vivo”, e avisa que isso não é uma “obviedade”. “Porque você tem uma infinidade de gêneros musicais que ficarão datados, como foi o caso do maxixe. O maxixe era um gênero musical muito popular no Rio de Janeiro, no início do século 20”.
A permanência do samba é explicada por alguns motivos, defende Simas. “Eu acho que o samba continua primeiro porque ele tem uma capacidade impactante de se transformar enquanto permanece. O samba vive nessa encruzilhada entre a permanência e a transformação.
“Entre a raiz profunda e a copa mais alta da árvore. Costumo dizer que o samba, a cultura do samba, é como um arco e flecha. Quanto mais você estica o arco, puxa a corda, mais longe a flecha vai”, reflete.
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História secular
Luiz Antonio Simas é um dos curadores da mostra Pequenas África: O Rio que o samba inventou, atualmente em exposição em São Paulo no Instituto Moreira Salles (IMS), de forma gratuita.
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Além do professor, a equipe de curadoria é formada por Ynaê Lopes dos Santos, Angélica Ferrarez, e Vinícius Natal. A mostra reconstrói a cena cultural da capital fluminense entre as décadas de 1910 e 1940 e mostra a influência do samba para construção da sociedade daquela época.
A exposição conta o que foi esta “pequena África” criada no Rio de Janeiro, vivendo à margem do Rio de Janeiro branco e europeizado. A expressão que dá nome à mostra foi cunhada pelo sambista Heitor dos Prazeres para se referir à região da Zona Portuária do Rio, que, no começo do século 20, concentrava uma numerosa população afrodescendente.
O Cais do Valongo é tido como o maior porto escravista da história, tendo recebido cerca de 1 milhão de africanos vindos forçados para o Rio de Janeiro.
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O Brasil de 2023, portanto, 100 anos após o recorde da mostra, traz características muito semelhantes com este Rio do início do século 20.
Com “extremisimo cuidado”, Luiz Antonio Simas compara o momento do funk com a origem do samba.
Uma ligação política que envolve os dois é a maneira como as culturas não brancas são vistas ao longo da história do Brasil, o que evidentemente é fruto da estrutura racista da nossa formação
No entanto, o professor pede atenção a este tipo de comparação pelo fato de o funk ainda estar em processo de criação: “é muito difícil a gente imaginar a repercussão das coisas no momento mesmo que elas estão acontecendo. Eu não sei o que vai acontecer com o funk daqui a 100 anos”, afirma.
Filosofia de vida
Autor de mais de 20 livros que contam das maneiras mais diversas a história do samba e outras manifestações afrodisaspóricas, Luiz Antonio Simas tem muitas maneiras de definir o samba. E acha que quase todas dão, apenas, uma parte da dimensão complexa que é a manifestação cultural.
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“O sistema de organização do mundo que parte da musicalidade, que parte da 'corporeidade' para criar sentidos amplos de vida”, diz o autor, afirmando ser essa uma das definições mais completas.
Para o escritor, a expressão “samba é uma filosofia de vida” não é exagero linguístico, nem devoção demasiada de sambista.
Formado em história, ele lembra que falar do samba significa “entrar no campo das filosofias africanas, das cosmologias. A vida não faz sentido sem a música. A música está presente no cotidiano para rigorosamente tudo”.
“O samba está inserido num escopo mais amplo das grandes percepções de mundo montadas pelas civilizações africanas e redefinidas pela experiência da diáspora”.
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E, para Simas, tudo isso só soa estranho para a maioria das pessoas “porque a gente tem uma maneira de achar que quem produz filosofia é só o ocidente”
Edição: Douglas Matos