memória e patrimônio

'Hoje o apoio aos mestres é insignificante em qualquer estado', diz Mestre Gilmar, à frente de Maracatu fundado no século 19

Estrela Brilhante tem sede em Igarassu, cidade a 27 km do Recife

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'Só procuram a Cultura Popular quando é na hora de ganhar o voto, porque depois que ganha esquece', diz Mestre Gilmar - Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

Quando menino, Gilmar sentava ao lado da barra das saias da avó e da mãe aperreando para aprender o maracatu. A avó Mariú não se incomodava com o garoto curioso, que mexia nos Mineiros e Gonguês, e enchia os adultos de perguntas, pois ela dizia “que precisamos de gente assim para manter o maracatu amanhã e depois”. Como é comum à sabedoria das mais velhas, foi isso mesmo o que aconteceu: hoje Gilmar Santana é um dos mestres que mantém viva a centenária tradição cultural do maracatu de Baque Virado em Pernambuco. 

No Município de Igarassu, localizado a 27km do Recife, fica a Sede do Estrela Brilhante de Igarassu. Reconhecido como Ponto de Cultura e Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco desde 2009, ele é um dos maracatus mais antigos que se sabe, datado de 1824. Há quem diga que essa é apenas a versão oficial, porque nas fala dos antigos o brincar do baque virado já existia desde pelo menos 1750.

Para o Mestre, a vida longa da tradição – que é também a história de sua própria família – revela a resistência que sempre compôs a festa. “O Baque Virado é uma coisa divina, tão rica, que eu não sei nem explicar o nosso apreço”, diz em entrevista ao Nonada Jornalismo durante a sua passagem por Porto Alegre para ministrar oficinas de percussão no espaço Afro-Sul Odomodê. “Nem todo mundo vai ter o privilégio de manter uma tradição centenária como essa que estou de frente.” 

Do bisavô, para bisavó, para avó, para mãe, para ele. Mestre Gilmar conta que o desejo mesmo era de que sua mãe estivesse ao seu lado, mas Dona Olga se encantou há 10 anos. O Mestre segue fazendo exatamente o que ela lhe ensinou, passando de geração em geração o maracatu de baque solto ou maracatu naçãoque se diferencia da manifestação do maracatu de baque virado (ou rural). Mestre Gilmar faz o mesmo hoje com seus três filhos e os sobrinhos, porque para ele a ancestralidade está nessa continuidade que é regada no presente. O Estrela Brilhante soma reconhecimentos do trabalho que faz em relação à cultura popular. 

Origem na religião


Foto: Costa Neto/Secult-PE


Em outros momentos, o Mestre já disse que o “maracatu é o Candomblé fora do terreiro”. Ele conta que durante muito tempo os brincantes eram vistos como Catimbozeiros, ou seja, pessoas de religião de matriz africana. O Mestre lembra que as raízes africanas e afro-brasileiras fundaram as nações e que o maracatu servia como uma espécie de cortina, através do barulho emitido pelas Alfaias, Gongês e Caixas, para que os praticantes pudessem praticar a religiosidade. “Na época em que era proibido, utilizava-se o folguedo para tocar na frente e, então, cultuar a religião dentro dos terreiros.” Segundo o Iphan, o Estrela Brilhante tem raiz na relação com Xangô e a jurema.

Embora exista uma proximidade histórica, o Mestre avalia que não é uma relação obrigatória. “O maracatu é um folguedo. Tem um vínculo religioso em si, mas para as pessoas que são da religião. Se você não faz parte, você vai brincar maracatu do mesmo jeito.” No caso do Mestre, a fé constitui sua prática pessoal, já que ele faz os próprios trabalhos e preparos, mas jamais torna isso uma regra ou fator decisivo para quem brinca junto. “Hoje poucas pessoas que dançam no Estrela Brilhante tem um vínculo religioso. São mais as pessoas mais idosas e alguns rapazes, mas não é todo mundo.”

As toadas – ou loas – do Estrela Brilhante são características do grupo e os diferenciam de outros Maracatus. Cantadas ao passar dos anos, as letras saúdam as entidades e o cotidiano da região. Nenhuma está registrada em sistemas oficiais, mas isso não impede que a transmissão siga e que novas loas sejam entoadas. “Somos o único maracatu que pode ser identificado pelo seu baque”, diz o Mestre. O uso do Bacalhau, uma varinha que faz um som de agudo no tambor, torna o sotaque particular do Estrela “funkeado”, alegre. Outros maracatus costumam fazer o uso de duas baquetas, produzindo um timbre diferente. 

Os instrumentos utilizados no batuque tradicional são zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol (ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. Os tambores, que antigamente eram feitos com barrica de transportar o peixe bacalhau, agora talhados no tronco de macaíba, são tocados com uma baqueta (ao invés de duas) e uma vareta ou galho de árvore, chamado bacalhau, o que confere um toque diferenciado ao baque do Estrela.

Foto: Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo


Canta-se e entoa-se para a Boneca Emília. Originalmente, o nome da boneca era Joventina, primeira boneca do maracatu, mas uma senhora portuguesa a levou para a Europa quando a avó de Gilmar ainda era viva. O roubo colonial não impediu que a tradição de reverência à boneca acontecesse. O mestre conta que assim que se deram conta do desaparecimento, sua avó pediu ao marceneiro que fizesse outra.“A boneca é tão perfeita que você vê uma pessoa nela”, diz Gilmar. “Até hoje a Dona Emília comanda a nossa nação”. Quem anima a boneca, cuida e conduz durante os cortejos é a Dama de Passo, figura mais antiga do Estrela, que atualmente é ocupada por Maria Joana, de 78 anos, brincante desde os 5 anos de idade. 

“A Dona Emília é a dona de tudo. O povo precisa reverenciar mais ela do que o Mestre”, diz Gilmar. Segundo o que contava a bisavó Dona Maria Assu, a boneca é uma entidade, uma preta-velha, parente dela. Como as mulheres da família e o próprio maracatu, ela viveu mais de um século – 115 anos. “Elas me ensinaram a ser do mesmo jeito que minha mãe era: uma pessoa pacata, que abraça e dá atenção a todo mundo, independente de ser formado ou não, de ter dinheiro ou não.” 

Preocupação com o futuro 

Nas últimas décadas, o maracatu fora de Pernambuco vem se multiplicando, como é o caso do Rio Maracatu, no Rio de Janeiro, do Maracatu Truvão, em Porto Alegre, e do Maracatu Arrasta Ilha, em Florianópolis. Para o Mestre, esse movimento é importante, desde que suas raízes sejam sempre lembradas e reafirmadas. “Eu acho importante que divulguem de onde é, como começou, e que incentivem as pessoas a irem até lá também, a conhecerem todas as nações para entender a diferença de uma para a outra.” Os instrumentos, o sotaque, as letras, e até o jeito de recepcionar mudam de acordo com cada Maracatu. 

Antes de se dedicar integralmente ao Maracatu, Gilmar trabalhava como operador de caldeira em uma fábrica. Há pelo menos dez anos a sua vida é o Estrela Brilhante, mas nem por isso recebe o apoio devido do estado. A falta de apoio contínuo a Mestres e Mestras da Cultura Popular é uma um problema que atravessa regiões no país, como o Nonada mostrou em uma reportagem que revelou a negligência durante a pandemia. Desde 2014, os griôs buscam a aprovação de um Projeto de Lei que garanta uma sobrevivência para aqueles que dedicam a vida para manutenção da cultura popular.

“Hoje o apoio aos Mestres é insignificante em qualquer estado”, diz o Mestre. “Só procuram a Cultura Popular quando é na hora de ganhar o voto, porque depois que ganha esquece”, denuncia o Mestre. Em setembro, mês de São Cosme e Damião, padroeiro da cidade de Recife, ele aponta que o Maracatu foi sequer convidado para os eventos de celebração. 

No dia em que realizava a entrevista, o Mestre havia recebido uma mensagem no Whatsapp de uma campanha que a comunidade de Rosario estava realizando para arrecadar fundos a um Mestre de Cultura Popular que sofreu um AVC. “Vejo ele pedindo fralda, itens básicos, e se ele tivesse a renda dele isso não estaria acontecendo. É alguém que vive da maré, sem necessidade porque tem muito talento e poderia ser reconhecido”, diz. “A gente precisa ter pelo menos o dinheiro para comprar o remédio, alimentação, porque geralmente a casinha própria nós temos.” 

Outra necessidade que os Mestres de Sul a Norte do país relatam é o de auxílio com deslocamento para que possam multiplicar os saberes que detém em outras regiões. Semanalmente, o Mestre tem ido até Olinda para ensinar um grupo chamado Alafia, que se apresenta no Carnaval do Recife. As aulas acontecem no Mercado da Ribeira e são gratuitas para a comunidade. “No Carnaval, a gente percebe que são muitas as manifestações: maracatu Rural, maracatu do Baque Virado, Cavalho-Marinho, Ciranda, Frevo, Afoxé, Samba, Pagode, Música Eletrônica, Galo da Madrugada. Tem som para todo mundo.”

Gilmar relata ter medo desse futuro incerto ao qual muitos acabam submetidos. “Infelizmente, se você não plantar para depois colher, você vai ficar desse mesmo jeito. Eu não quero ficar assim, não. A gente vive em uma sociedade em que a pessoa só é boa quando está produzindo, depois se esquece.”

Mestres abrem portas 

“Para ser um mestre, na minha concepção, a pessoa precisa ter o conhecimento básico e profundo do início ao fim do maracatu, de trás para frente.” O Mestre de Cultura, ao seu olhar, não pode ser alguém que sabe apenas fazer uma coisa – apitar, por exemplo. Mestre Gilmar toca todos os instrumentos, desenha, confecciona e compra os figurinos. E, claro, move-se pela paixão por ensinar. “Eu não sou a estrela. Quem brilha é o maracatu”, sinaliza logo.

Como Dona Olga, Gilmar aprendeu a ser uma pessoa que gosta de acolher os outros, e é o que eu faz até hoje. “Ela abria a porta da casa dela, dava dormido, mesmo sem saber de onde a pessoa era”. Pessoas de diferentes estados do país seguem batendo na porta da sede para aprender sobre a tradição do maracatu. Em nossa conversa, o Mestre conta o sonho que tem de expandir o espaço físico do Estrela Igarassu e construir um dormitório, para que mais pessoas possam visitar, ir para o carnaval, e ter um lugar para ficar de forma gratuita. “Tenho fé em Deus que eu vou ainda conseguir realizar.”