Nesta segunda (20), aos 20 anos da aprovação da política de regularização fundiária de quilombos (decreto nº 4887/03) e, no entanto, com apenas 12,6% da população quilombola vivendo em terras regulamentadas, o governo federal anunciou a titulação de cinco quilombos. Três deles estão no Maranhão, um em Sergipe e outro no Tocantins. No total, 319 famílias tiveram suas terras reconhecidas.
Mário dos Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (Conaq), salienta que a notícia é "importante". "A gente vem há anos lutando pela titularidade dos nossos territórios. Onde nossos ancestrais pescavam, trabalhavam na roça, buscavam suas plantas medicinais."
"Com essa titulação dada pelo governo nesta semana, os conflitos em torno da terra já melhoram em alguns territórios. Inibe um bocado. Em outros, não. Em outros, o conflito aumenta. Infelizmente", alerta Santos, ao destacar a importância de a regularização vir acompanhada da desintrusão, como é chamada a retirada de pessoas invasoras de territórios tradicionais.
"A exemplo de Pernambuco", ilustra Santos, que é do Quilombo de Estiva, do município de Garanhuns (PE), "lideranças de algumas comunidades que tiveram publicado o Reconhecimento e Indenização de Territórios Quilombolas (RTID) estão amedrontadas porque o conflito aumenta diretamente com o fazendeiro".
Citando o caso da quilombola Bernadete Pacífico, executada dentro de sua casa na Bahia em 17 de agosto, Mário dos Santos lembra que, como ela, há outras lideranças que não se sentem resguardadas por sistemas estatais de proteção a defensores de direitos humanos ameaçados. "Por isso a gente luta para criar a titularidade, mas que aconteça a desintrusão, para que afaste os fazendeiros dos nossos territórios e nosso povo possa viver em harmonia", ressalta Santos. "Com essa titularidade vem aquele sentimento de viver em paz", resume.
:: Média anual de assassinatos de quilombolas entre 2018 e 2022 é quase o dobro dos 10 anos anteriores ::
Os cinco quilombos titulados no 20N
O Quilombo da Ilha de São Vicente, na cidade de Araguatins (TO), é o primeiro a ser regularizado no estado do Tocantins. A comunidade de 55 famílias cercada pelo Rio Araguaia surgiu em 1888, ano da abolição da escravidão. Os moradores ainda enfrentam, no entanto, conflitos envolvendo desmatamento, além de compra e venda ilegal de lotes dentro da área que, desde 2020, é considerada um quilombo pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Já no Quilombo Lagoa dos Campinhos, localizado na zona rural dos municípios Amparo do São Francisco (SE) e Telha (SE), vivem 89 famílias. De acordo com o Mapa de Conflitos da Fiocruz, a luta pela titulação destas terras, que ganhou força a partir de 2002, encontrou na violência de políticos e fazendeiros locais os principais obstáculos.
"As arbitrariedades têm, segundo relatos publicados pelo Observatório Quilombola (Koinonia), como principais mandantes os fazendeiros José Edvam Amorim, genro do ex-governador [de Sergipe, João Alves Filho (DEM)] e José João Guimarães de Lima, ex-prefeito do município de Telha", aponta o documento da Fiocruz.
Entre os ataques aos quilombolas de Lagoa dos Campinhos, o mapeamento da Fiocruz lista denúncias deles próprios e do Ministério Público envolvendo invasão da comunidade por jagunços armados, ameaças, impedimento de passagem, destruição de plantações, morte de animais e agressão física a pessoas. A despeito destes conflitos, a comunidade foi reconhecida como remanescente de quilombo em 2004 pela Fundação Cultural Palmares e agora, teve a titulação assinada.
Diferente desses territórios, ambos de área federal, os outros três quilombos tiveram os títulos entregues pelo Instituto de Terras do Maranhão. Foram beneficiadas 45 famílias das comunidades Malhada dos Pretos e 50 famílias de Santa Cruz, da cidade de Peri Mirim (MA), além de 80 famílias do Quilombo Deus Bem Sabe, do município de Serrano (MA).
"Ficamos muito felizes com esse anúncio", conta José Alex, também da Conaq e da comunidade quilombola Armada, de Canguçu (RS). "Queremos mais, queríamos que fossem mais comunidades tituladas, mas a gente sabe que infelizmente o sistema é um pouco lento e tem muitas barreiras", afirma. "Mas aos poucos a gente vai derrubando essas barreiras", salienta.
De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 1,2 milhões de quilombolas aguardam o título definitivo da terra. E é essa a principal reivindicação da Conaq, cujo levantamento revelou que, na última década, 30 quilombolas foram assassinados no Brasil.
Em nota da Conaq, o coordenador Biko Rodrigues afirma que "não dá para o sistema de justiça ignorar as violências que acontecem nos territórios quilombolas. A política de quilombo exige recurso físico e financeiro. Não tem como a gente resolver a questão dos quilombos com orçamento de R$10 milhões para 2024. Se o governo federal não colocar recurso, assassinatos semelhantes a esse vão continuar acontecendo".
Edição: Thalita Pires