Rio de Janeiro

Em pauta

“Retomar programas não é automaticamente viabilizar mudanças”, avalia Roberto Kant de Lima

Antropólogo destaca a necessidade de mais atenção à reformulação de políticas públicas no país, tema de seminário na UFF

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Para pesquisador, o debate em torno da efetividade dessas políticas não se resume a sua retomada - Foto: Marcelo Aguiar

Nos primeiros meses do terceiro mandato de Lula (PT) na Presidência da República foram retomadas políticas públicas criadas em mandatos anteriores dos governos petistas - e modificadas ou paralisadas no governo Bolsonaro. Programas como “Minha Casa, Minha Vida”; “Bolsa Família” e “Valorização do Salário Mínimo” estão novamente ativos.

Leia também: Reconstrução de políticas públicas no Brasil é tema de seminário internacional na UFF

No entanto, o debate em torno da efetividade dessas políticas não se resume a sua retomada, mas passa também pela necessidade de reformulação. Para o antropólogo e professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Roberto Kant de Lima, é de alta relevância a reativação de políticas públicas que se dirijam para administrar os problemas mais sérios que o Brasil enfrenta, porém, retomar programas não é automaticamente viabilizar mudanças.

“O contexto da sociedade mostrou que se faz necessária mais atenção ao acompanhamento, avaliação e reformulação de políticas públicas se queremos obter efeitos duradouros. Às vezes as coisas mudam para continuar as mesmas”, afirma em entrevista ao Brasil de Fato.

Kant é coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (INCT- InEAC - UFF), que organiza a 10ª edição de seu seminário internacional neste ano, com o tema “Políticas Públicas em Perspectiva – a desigualdade como estruturante”. O evento acontece entre os próximos dias 23 e 24 de novembro, na modalidade online, e 28 de novembro a 1º de dezembro, na modalidade presencial. A programação completa pode ser acessada no site do evento: https://xseminarioinctineac.com/.

 


Os Seminários Internacionais do INCT-InEAC acontecem há 14 anos na UFF / Carina Cardoso/ Divulgação

Confira a entrevista completa: 

Brasil de Fato: O Governo Federal tem retomado grandes políticas públicas desenvolvidas em mandatos anteriores de Lula e Dilma, que foram suspendidas no governo Bolsonaro. Qual a importância da retomada desses programas?

Roberto Kant: Certamente é de alta relevância a retomada de políticas públicas que se dirijam para administrar os problemas mais sérios que o Brasil enfrenta. E que não são poucos. O Governo Federal tem enfatizado o combate à fome, o que é básico e fundamental, mas como diz a música, “a gente não quer só comida…”.

É necessário agir também, não só na educação e cultura, mas também na educação política da sociedade, que durante os últimos anos, ao esquecer, inclusive, a ditadura do governo militar, demonstrou que há pouca compreensão das questões políticas que afetam o governo do país. A segurança pública e o sistema de justiça estão, certamente, dentro dessas prioridades.

Retomar esses programas é suficiente ou também seria preciso reformular o que foi feito? A mudança na Lei de Cotas, sancionada por Lula na última semana, é um bom exemplo de reformulação?

Simplesmente retomar programas não é automaticamente viabilizar mudanças, porque, como eu disse, o contexto da sociedade mostrou que faz-se necessária mais atenção ao acompanhamento, avaliação e reformulação de políticas públicas se queremos obter efeitos duradouros. Às vezes as coisas mudam para continuar as mesmas... Sim, a alteração da política de quotas é um exemplo.

Quais os principais desafios colocados hoje para elaboração de políticas públicas no país?

No INCT-InEAC há muitos trabalhos de campo que dão conta da prática do judiciário e da polícia com estudos de caso, acompanhamentos da rotinas desses agentes públicos e cidadãos envolvidos, tudo descrito em muitos títulos publicados: somente em nossa Coleção na Editora Autografia, iniciada dede 2017, são mais de 70 títulos.

E também muitos vídeos e discussões em nosso canal do YouTube. Nosso trabalho produz conhecimento científico, com métodos reconhecidos, para uso prático dos operadores da polícia, do direito e justiça, de outros pesquisadores, e instrumentos para subsidiar a produção de políticas públicas, então essa é a nossa parte, dentro de um universo grande de atores e instituições.

A principal questão para nós é a negação sistemática da ambiguidade da ideia de igualdade na sociedade brasileira, refletindo-se em nosso sistema jurídico, judicial e de segurança pública. No Brasil, coexistem duas ideias paradoxais de igualdade: a igualdade cidadã universal, que exige tratamento uniforme para todos os cidadãos; e uma outra, que reforça desigualdades sociais, resultando em tratamentos desiguais com base no status social.

Essas ideias se dão tanto no discurso público, como nas práticas institucionais, especialmente naquelas voltadas para os processos de administração de conflitos na sociedade.  

Quais seriam os exemplos práticos disso?

Podemos citar alguns exemplos para ilustrar esse modus operandi: como os relativos a indenizações por dano moral de acordo com o status da vítima e não de acordo com o dano sofrido; também polêmicas e casos de prisão preventiva, com prisão sendo aplicada só depois de segunda instância para crimes de colarinho branco e prisão preventiva sem sentença condenatória para 40% dos outros presos por crimes comuns, na maioria praticados sem violência; situações em que há decretação de prisão preventiva nas audiências de custódia, com tratamento diferenciado para pessoas que foram presas em flagrante cometendo o mesmo delito, em função de seu status social. São alguns exemplos, porém existem muitos outros. 

A Constituição afirma a igualdade perante a lei desde 1891, mas a prática frequentemente a interpreta como "quinhoar desigualmente os desiguais", frase de Ruy Barbosa que é tida como uma referência para os operadores do sistema jurídico brasileiro. Portanto na nossa opinião, enquanto a desigualdade for naturalizada, não alcançaremos efetivamente uma sociedade democrática e republicana.  

Como a 10ª edição do Seminário do InEAC pretende contribuir com esse debate?

Bom, nossa temática neste ano é exatamente: "Políticas Públicas em Perspectiva - a desigualdade como estruturante", onde debateremos várias questões relativas a esta ambiguidade e serão discutidas pesquisas, especialmente de caráter empírico, descritivo e etnográfico, onde se pode demonstrar o resultado desta ambiguidade. 

Pretende-se, assim, visibilizar essa idiossincrasia brasileira frente às sociedades liberais, burguesas ocidentais: no Brasil,o modelo da desigualdade, e não da igualdade, é o princípio estruturante das relações sociais e institucionais. De certa forma, nesses aspectos, somos uma sociedade com representações sociais e institucionais pré-modernas.

Edição: Eduardo Miranda