Não é possível que a 'mudança', como palavra de ordem, continue com a extrema direita
Durante a campanha presidencial na Argentina, o professor Belluzo escreveu um artigo de opinião na revista Carta Capital, contando a história de um entregador portenho. Ele trabalhava de 18 horas à meia-noite, sem férias ou décimo-terceiro, não terminou a Faculdade de jornalismo pelo alto custo da mensalidade e, desiludido em relação ao que o Estado poderia lhe oferecer, não via problema em votar no candidato de extrema direita, Javier Milei.
Fato é que, não se trata de uma situação isolada, a falta de perspectiva corroi a esperança do povo argentino. A economia em frangalhos com uma inflação galopante que passa os 100% no ano e uma alternativa política eleitoral de continuidade ao que já está ruim, não sustentam nenhum governo progressista, por mais atento aos temas importantes da sociedade. Isso acaba por fragilizar os projetos políticos no campo das esquerdas, que se limitam a realizar a gestão do Estado, no que o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, chamou de progressismo moderado e os seus perigos.
Hoje, nos limitarmos a defender os legados da primeira onda do progressismo latino-americano do início dos anos 2000, de mero enfrentamento as formas de manifestação do neoliberalismo, pode não ser suficiente. A reorganização das forças reacionárias e as múltiplas possibilidades de expansão neoliberal devem nos lançar também a necessidade de realizar a disputa ideológica com maior organização e ousadia. Não é possível que a “mudança”, como palavra de ordem, continue com a extrema direita, enquanto as forças progressistas alimentem a lógica da continuidade.
:: Milei pode ter dificuldade para concluir mandato, diz especialista em história argentina ::
Não restam dúvidas que as disputas estão abertas na correlação de forças políticas latino-americana. Basta vermos as vitórias de Milei na Argentina e do empresário Daniel Noboa no Equador em 2023. As questões recentes colocam no horizonte novos desafios de como lidar com a covid, o aprofundamento da crise capitalista no mundo, a urgência climática e a maior violência na atuação da extrema direita no cenário político.
Um olhar para o Brasil, resta certo que não se deve abrir mão da política de combate à fome, do fortalecimento econômico e do emprego. Embora, só cuidar destes pontos não pareça ser o suficiente para encarar o próximo período.
A disputa ideológica deve começar a ser enfrentada. Manter o recuo da política e conciliar com os atores de sempre, na maioria dos cenários e variadas esferas de poder, pode nos levar a uma situação de perda de perspectiva e do projeto. O progressismo deve avançar, pois se permanecer parado, no tempo e no espaço, não dará as respostas que se espera e cederá espaço para a narrativa e as aventuras da extrema direita.
:: O abraço íntimo entre o liberalismo e a extrema direita ::
Por mais que Brasil e Argentina se diferenciem enquanto países, são frutos de um mesmo processo histórico-social de exploração da sua gente e de seus territórios. Para além do desenho divugado do abraço solidário da Mônica na Mafalda, sair de situações de crise requererá uma maior articulação enquanto força política popular latino-americana, pois o problema de hoje por lá, amanhã poderá a voltar a ser o nosso aqui.
*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo