No coração de Brasília, o busto de um homem negro que lutou pela libertação dos escravizados: Zumbi dos Palmares. Localizada na praça que leva o mesmo nome, em frente ao CONIC, a escultura pode ser um ponto de partida para se pensar na memória negra do Distrito Federal.
Inaugurado em 1995, ano do tricentenário da morte de Zumbi, o busto foi erguido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) para demarcar um espaço de encontro do movimento negro em Brasília.
No mesmo ano, aconteceu a primeira Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que partiu da praça em direção à Esplanada dos Ministérios. O evento histórico reuniu cerca de 30 mil pessoas de todos os cantos do país que marcharam denunciando a ausência de políticas públicas para a população negra. “Celebraremos Zumbi reafirmando nossa disposição de luta contra a miséria e a marginalização a que somos submetidos pela exploração racista”, convocava a organização.
Zumbi foi líder do maior e mais longevo quilombo do Brasil colonial: o Quilombo dos Palmares, localizado no atual estado de Alagoas, que chegou a reunir mais de 20 mil pessoas que fugiram da desumanização imposta pelos escravizadores. Portanto, a praça localizada no centro de Brasília, apesar da necessidade de revitalização, é um símbolo importante da luta e resistência negra na cidade, que já foi considerada a mais segregada do mundo.
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“Podemos dizer que Palmares foi o primeiro grande movimento negro do país, contrariando as ideias de que os escravizados não resistiam, não lutavam. O que é uma grande mentira”, explicou a guia turística Bianca D’Aya, durante a tour Brasília Negra, organizado pela agência Me Leva Cerrado, que começa na praça Zumbi dos Palmares.
Quilombolas no DF
A área em que hoje está localizada a Esplanada dos Ministérios, antes da chegada dos prédios imponentes, já foi local de pastagem de bois pertencentes a moradores do Quilombo Mesquita, situado na Cidade Ocidental (GO). Atualmente, segundo o Censo de 2022, existem 305 quilombolas remanescentes no DF. Grande parte dessa população que ajudou a construir Brasília foi empurrada, após a inauguração, para áreas do entorno.
Ainda segundo o Censo, mais de 14 mil quilombolas vivem na Região Integrada de Desenvolvimento do DF e Entorno, que abrange municípios de Goiás e Minas Gerais. Em Cavalcante (GO), por exemplo, dos 9.589 habitantes, 5.473 se autodeclaram quilombolas. A cidade abriga a comunidade quilombola Kalunga, com 3.528 pessoas, sendo uma das maiores do Brasil.
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“Mesquita é um quilombo que hoje está reduzidíssimo, porque obviamente ninguém valoriza as terras de quilombolas. Eles estão cada vez perdendo mais territórios, mas a terra deles chegava em Mangueiral e em Santa Maria”, afirmou Bianca D’aya.
Memória candanga é memória negra
Esse processo de expulsão da cidade foi recorrente durante a história de Brasília. Após o movimento migratório de milhares de pessoas, em sua maioria negras, vindas principalmente de Goiás, Minas Gerais e do Nordeste para a construção da capital, começa em 1964 a Operação Retorno.
O objetivo era remover “seis mil candangos desempregados, com suas respectivas famílias” para seus estados de origem. Quem havia erguido Brasília já não era mais bem-vindo ali. Mas as pessoas resistiram, fixando permanência e reivindicando posse do chão que ajudaram a construir.
É nesse momento que surgem as chamadas “invasões”, que depois se transformam em cidades satélites, hoje chamadas Regiões Administrativas. Ceilândia, por exemplo, tem seu nome herdado da "Campanha de Erradicação das Invasões" (CEI), criada pelo governo em 1971 para assentar famílias vindas das citadas “invasões”.
“Eu lembro que eles chegaram no barraco lá de casa e escreveram bem grandão ‘25’. Era o dia que eles iam tirar o nosso barraco”, contou Antonia Samir, servidora pública que foi retirada com sua família para Ceilândia. Ela ainda recorda da “sensação de estar numa estrada que nunca chegava”, após caminhões derrubarem o barraco da família e levarem todos para outro local.
“Então eles nos tiraram e mudaram a lógica da vida das pessoas, porque [antes] você estava perto do trabalho, perto de tudo”, contou emocionada Samir, que já presidiu a Associação dos Incansáveis Moradores da Ceilândia, um dos movimentos que lutaram por moradia digna no DF.
A história dos candangos, como ficaram conhecidos esses migrantes, é contada no Museu Vivo da História Candanga, outro ponto visitado pela tour Brasília Negra. O espaço foi inaugurado em 1990 no local onde anteriormente existia o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (HJKO).
O Museu abriga a exposição “Poeira, Lona e Concreto”, que começa com a imagem de um pau de arara, meio de transporte precário em que vários trabalhadores eram transportados.
Além de esboços do projeto arquitetônico de Brasília, a exposição traz retratos da vida dos candangos em Brasília. Em um espaço, há uma simulação de como essas pessoas se organizam e se alimentavam nas construções, cozinhando em barracos improvisados.
Muito além de operários
A história das pessoas negras que se deslocaram de vários locais do país para erguer Brasília também é retratada na exposição histórico-fotográfica “Reintegração de Posse: narrativas da presença negra na história do Distrito Federal” que ocupa dois pontos de ônibus do Setor Comercial Sul (SCS) e do Setor Bancário Sul (SBS), conectando a Galeria dos Estados.
O objetivo da exposição é mostrar outras vivências das pessoas negras que chegaram à capital e eram muito mais do que operários. “Um esforço para falar de existências e elaborar narrativas sobre práticas de resistência protagonizadas por homens e mulheres que não apenas dedicaram seus esforços à construção de prédios e estradas, mas têm deixado, ao longo do tempo, suas marcas naquilo que aprendemos a chamar de nosso lugar”, diz um dos trechos da apresentação da exposição.
São imagens de pessoas negras em momentos de diversão e descontração, mas também de luta e resistência.
A Galeria dos Estados também abriga outras duas expressões culturais negras. Após o desabamento do viaduto em 2018, a Galeria é reinaugurada em 2021, quando o GDF faz um chamamento público aos artistas grafiteiros de Brasília e 121 artistas vem deixar a sua a sua arte impressa nos paredões. O grafite é um dos elementos da cultura Hip-Hop.
Além disso, é na Galeria dos Estados que acontece desde 2003 a festa Makossa. Nomeado em homenagem a um ritmo popular dos Camarões, o evento é um tradicional baile black da cidade, que celebra as raízes africanas e a cultura Hip-Hop no DF.
Praça dos Orixás resiste à intolerância religiosa
A Praça dos Orixás, localizada às margens do Lago Paranoá, é um importante ponto da memória negra conquistado pelas religiões de matriz africana no DF. Originalmente com estátuas de 16 orixás, criadas pelo artista plástico baiano Tatti Moreno, o espaço sagrado resiste a depredações motivadas por intolerância religiosa desde sua abertura.
Atualmente, a praça conta com apenas 15 estátuas, já que a de Ogum foi arrancada, e ao menos 6 estão danificadas.
Segundo mapeamento realizado em 2018 pela Fundação Palmares em parceria com o Projeto Geoafro da Universidade de Brasília (UnB), o DF tem 330 centros de religiões de matriz africana.
Apenas quatro estão no Plano Piloto. A maioria é localizada na Ceilândia, onde há 43, seguida por Planaltina, com 25 terreiros. O levantamento também revelou que 33% das casas de terreiro professam o candomblé, 57% a umbanda e cerca de 9% reúnem as duas vertentes.
Tour Brasília Negra
Além dos pontos citados, a Tour Brasília Negra passa pela Praça Marielle Franco e visita um baobá, árvore sagrada associada à memória oral no continente africano.
Segundo a guia, a ideia para a tour surgiu de inquietações durante o curso técnico de guia de turismo.
“A gente visitava muitos atrativos da cidade e eu sempre fazia esse questionamento: qual é a história negra desse lugar? E os mediadores ou os próprios guias não sabiam me dar uma resposta concreta. Daí surgiu essa pergunta: onde estavam as pessoas negras da cidade? Porque a gente sabe que muita gente migrou para Brasília para ajudar na construção, mas essas histórias não foram contadas. As histórias que foram contadas foram as dos grandes empresários, do Oscar Niemeyer, do Lúcio Costa, de JK. Então, eu quis fazer um levantamento dessas histórias apagadas, e adentrar na identidade e na cultura do povo negro da cidade”, contou.
De acordo com ela, contar essas histórias é uma forma de trazer "um pouco de identidade e de sentimento de pertencimento" para os moradores da cidade. "É um tour também que faz com que a gente exercite o nosso olhar crítico sobre a cidade, as pessoas, o racismo, a segregação e o uso da cidade", completou.
A reportagem do Brasil de Fato DF participou da visita guiada por Bianca D’Aya, bacharela em turismo e responsável pela agência Me Leva Cerrado, no dia 18 de novembro. A data da próxima edição será divulgada na página do projeto.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Márcia Silva