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Coluna

Como pensar nutrição e saúde alimentar pelas lentes do social

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Dra. Tlaleng Mofokeng, Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Saúde - Foto: sheleadsafrica.org
O relatório da ONU traz em peso uma perspectiva necessária: a de enxergar a Alimentação como um DH

Por Cecília Laís*

Intitulado “Comida, Nutrição e o direito à Saúde” (Food, Nutrition and the right to Health), o relatório de julho de 2023 da ONU acerca da promoção e proteção dos Direitos Humanos foi formulado pela Dra. Tlaleng Mofokeng, Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Saúde. Neste relatório, a relatora traz uma coletânea de dados e informações que nos faz pensar o problema da insegurança alimentar e seus aspectos de saúde consequentes de uma forma mais social. 

Dividido em tópicos que cobrem desde os aspectos legais e burocráticos do direito à alimentação e à saúde, até recomendações que pautam como melhorar a situação atual dos sistemas alimentares, o relatório é importantíssimo para compreender melhor as várias camadas e problemáticas presentes na busca pela erradicação da fome e da promoção da saúde nutricional.

Desde o início, a publicação traz a necessidade de primariamente reconhecer as desigualdades sistêmicas para melhor corrigir e promover o direito à alimentação e a saúde. Neste sentido, o ponto de partida são os seguintes dados: no mundo todo são, segundo a pesquisa mais recente apresentada no relatório, mais de 2,4 bilhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e, dessas, 800 milhões passam fome. São quase 4 “Brasis” passando fome completa e mais de 11 sem saber se terão a próxima refeição. 

Os números por si só já são impactantes e para tratar deles o relatório traz uma perspectiva que une uma narrativa sobre os deveres dos Estados, os problemas detectados e como superá-los. A pauta das grandes corporações alimentares é apontada no texto como relevante, mas não pelo motivo clássico e já conhecido sobre os fatores econômicos e financeiros vinculados a esse meio, e sim por uma outra problemática: a da propaganda utilizada para promoção dos alimentos dessas corporações.  

O papel dessa propaganda de grandes empresas do ramo alimentício é um tópico retomado diversas vezes ao longo do estudo e possui uma preocupação específica muito clara: as crianças. Apontadas pelo próprio relatório como uma camada social naturalmente mais vulnerável aos riscos de uma alimentação rica em ultraprocessados e sódio, as crianças são um grande alvo desse marketing pelo simples fato de serem uma audiência fácil de ser influenciada, tanto audiovisualmente quanto pelo paladar, e isso é fortemente indicado no relatório como algo a ser combatido pela força estatal. 

Adicionalmente, o relatório une esse marketing à degradação ambiental e ao aquecimento global. Sem entrar no mérito do papel gigante que essa indústria exerce nas emissões de CO2, o aquecimento global dentro da lógica do mercado é algo que também pode ser convertido em lucro, dessa vez através da chamada prática do “greenwashing”, que nada mais é do que vender um produto com a falsa promessa de que ele foi produzido de maneira sustentável. Além disso, o relatório aponta que até mesmo durante a época da pandemia da COVID-19, grandes empresas vendiam alimentos ultraprocessados sob a narrativa de serem mais seguros e livres da contaminação do vírus, reforçando o argumento da prática desleal do marketing dessas grandes redes.

Indo além da discussão sobre o papel perpetuador do problema da fome e da pobreza nutricional enfrentada por milhões de pessoas, o artigo também se prontifica a discutir sobre as iniquidades sistêmicas encontradas dentre a massa de pessoas famintas ao redor do globo. Mulheres, crianças, povos indígenas e comunidades étnicas com produção de pequena escala são apontados como grupos de maior vulnerabilidade à insegurança alimentar, ou seja, são essas as pessoas que primeiro e mais intensamente sofrem com a fome. 

Para fazer frente a esses desafios, recomenda-se trazer a discussão sobre fome e nutrição para mais próximo daqueles que mais sofrem e que mais estão suscetíveis a sofrer com ela. O direito à alimentação e à saúde, que está conectado com uma boa nutrição, exige correções necessárias para os problemas enfrentados para seu exercício pleno. É o tipo de discussão que exige uma atenção específica justamente por ser o tipo de direito que navega por outros. De acordo com o próprio documento, a má-nutrição pode alterar as respostas de imunidade do corpo humano, debilitando-o e afetando sua racionalidade e dignidade como indivíduo. 

Essa debilitação, inclusive, é apontada no texto como algo já estudado e inserido nas pesquisas da chamada “Teoria da Opressão Alimentar” (Food Oppression Theory). Basicamente, é o entendimento de que existem condições de raça, gênero e classe que deixam determinada pessoas mais vulneráveis ao desenvolvimento de certas doenças, e claro, não pelo motivo de algo que é intrínseco a essas pessoas e sim por toda uma conjuntura sistêmica imposta a elas. Essa maior vulnerabilidade social fragiliza as pessoas em nível individual, reduzindo sua capacidade física e laboral, assim como também fragiliza, em longo prazo, toda a comunidade a sua volta, exaurindo seus recursos humanos e perpetuando um padrão de marginalização, que inclui a falha no acesso aos direitos relativos à alimentação e que por vezes vai além desse. 

Deve-se destacar que - ao longo de todo o texto - algumas soluções já traçadas ao redor do mundo para os problemas apontados no relatório, dedica-se a destrinchar 16 recomendações para superar as limitações e obstáculos apresentados. Uma das recomendações que, talvez, seja a mais primordial frente às outras, é a que pauta a necessidade de uma abordagem decolonial e que enxergue o problema da insegurança alimentar junto de todas as suas interseccionalidades, isto é, que pense o problema e caminhos para superá-lo através de lentes particulares para cada camada mais fragilizada. E ainda acerca desse mesmo ponto, o texto segue traçando recomendações que tratam sobre essas particularidades, sugerindo abordagens que incorporem uma perspectiva de gênero, outras que pensem em políticas de apoio aos pequenos produtores e até mesmo as que levem em conta a nutrição de crianças em idade de amamentação e, por consequência, de suas mães. 

Importante notar que algumas das recomendações, inclusive, fazem menções positivas a políticas já praticadas no Brasil. A adição de selos de informação nutricional bem destacados em embalagens de produtos com baixo teor nutritivo, política essa também aplicada em outros países, é um desses exemplos e objetiva trazer uma maior ciência ao consumidor do valor nutricional daquele alimento, além de desconstruir a imagem construída pela propaganda desses alimentos. Outra política brasileira listada como “Boa Prática” no relatório é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que garante uma boa nutrição às crianças e adolescentes em idade escolar através das refeições fornecidas em escolas que se comprometem em adquirir parte desses alimentos de pequenos produtores. O PNAE foi citado como um programa que catalisa a expansão de alimentos saudáveis e contribui para a realização dos Direitos Humanos.

Por fim, pode-se concluir que o relatório traz em peso uma perspectiva necessária e ainda timidamente difundida que é a de enxergar a Alimentação e a saúde vinculada a ela como um Direito Humano que ainda precisa ganhar certos “tentáculos” novos, para que assim de fato esses Direitos sejam de todos/as. Inserir um debate interseccional e traçar soluções que levem isso em consideração demandam um trabalho pesado e por parte de diversas instâncias, mas que, como apontado no próprio relatório, tornam possível o acesso pleno e digno a uma “das mais comuns fontes de prazer”. 

*Graduanda em Relações Internacionais pela UFPB e membro do Grupo de Pesquisa FomeRI

Edição: Polyanna Gomes