Coluna

As reações do mercado e a disputa de projeto de país

Imagem de perfil do Colunistaesd
A preocupação do capital financeiro é com uma sociedade menos desigual, uma classe trabalhadora com mais dignidade - Cedoc-CUT (SP)
A partir das manifestações do capital financeiro podemos enxergar uma disputa de projeto de país

Por Marcelo Álvares de Lima Depieri*

No dia 27 de outubro de 2023, Lula afirmou que dificilmente o país alcançará a meta fiscal zero em 2024, como prevê o novo arcabouço fiscal do governo. Após essa fala, as reações de pessoas ligadas ao mercado financeiro foram imediatas. De lá para cá, começou a aparecer uma chuva de textos de opinião, editoriais nos jornais da grande mídia, comentaristas nos telejornais e nas rádios criticando a fala do presidente.

Mas qual seria o motivo de uma fala dessas gerar tanta repercussão? Qual é a tamanha importância da meta fiscal para alguns? Primeiramente, vale esclarecer que quando se fala de meta fiscal, a referência é o resultado primário da economia, que é o saldo do total do que o governo arrecadou (impostos, tributos e lucros de estatais) menos o total de despesas (investimentos, salários e manutenção de estruturas), sem contar os gastos com juros. O que sobra desse resultado é o montante disponível que o governo tem para suas obrigações para pagamento de juros de sua dívida pública. Em caso de superávit primário, sobra-se dinheiro para o pagamento desses juros da dívida pública já existente. Em caso de déficit, o governo, para cumprir suas obrigações, poderá aumentar sua dívida ou emitir mais da sua própria moeda.

Assim, a fala de Lula supõe para seus críticos que o Brasil estará longe de atingir um resultado em suas contas públicas que garanta o pagamento das obrigações com juros e que provavelmente a dívida pública do país aumentará. Nesse ponto, o interessante a ressaltar é que se manifesta uma contradição entre o posicionamento dos representantes do capital financeiro e os interesses mais imediatos desse capital. No neoliberalismo, um dos principais instrumentos que o capital financeiro se utiliza para acumular mais capital é a dívida pública. Ao advogar pelos superávits primários e pela diminuição da dívida pública, os capitalistas financeiros e seus porta-vozes estariam se posicionando contrariamente a um elemento que seria motor de seus próprios ganhos? Antes de analisarmos o motivo de tal posicionamento, vamos elucidar como se justifica tal posicionamento e como ele se legitima diante de parte da sociedade.

Esse posicionamento é amparado por uma visão dentro das Ciências Econômicas, que defende que para não aumentarem os riscos da economia e/ou para a economia crescer é necessário que as contas públicas estejam controladas. Um baixo risco de não pagamento de suas obrigações financeiras atrairia investidores estrangeiros para o país e assim realizariam investimentos. O acúmulo de superávits e a formação de poupança possibilitariam os investimentos públicos. Este último raciocínio é uma forma lógica de pensar que faz muito sentido na cabeça de muitos, uma vez que é assim o funcionamento do orçamento familiar, em que, de fato, a situação familiar piorará caso se gaste mais do que se arrecade. Assim, passa-se a ideia de que o orçamento público tem o mesmo funcionamento de um orçamento familiar. No entanto, o orçamento público possui seus próprios funcionamentos, quando se gasta mais do que arrecada o governo pode emitir títulos de sua dívida pública ou mesmo emitir mais de sua própria moeda. Ainda, se parte dos gastos for para investimentos produtivos, em médio ou longo prazo terá o retorno financeiro por meio de maior arrecadação de impostos advindos da produção, do maior número de empregos na economia e do aumento do consumo, o que coloca inclusive a possibilidade de um melhor resultado primário diante de uma maior arrecadação.

O principal motivo para o setor da fração financeira da classe dominante defender rigidez nas contas públicas e austeridade nos gastos do governo é a luta por fatias cada vez maiores do orçamento público. É como uma luta de classes dentro do próprio Estado, em torno de quem receberá mais do orçamento. 

Na economia financeirizada essa luta é intensificada. O neoliberalismo é a manifestação, em termos de políticas (econômicas e outras), da acumulação de capital baseada no capital portador de juros (capital financeiro). Então, a luta para que o Estado direcione suas energias para as obrigações financeiras ganha maiores proporções.

As exigências da acumulação capitalista baseada no capital portador de juros trazem efeitos perversos para a organização social e política do país. De um jeito ou de outro, os que defendem os interesses do capital financeiro, ou, na aparência, a austeridade e o rígido controle das contas públicas, se afastam de bandeiras como a da democracia e a da igualdade. Para universalizar sua visão de mundo, o capital financeiro, por meio de seus interlocutores na imprensa, diariamente repete dogmas de que se o Estado gastar, ele irá quebrar, de que se as contas públicas não estiverem controladas, o país não crescerá. 

É uma espécie de totalitarismo de mercado, em que os mantras da austeridade são repetidos diariamente em tons de ameaça, mesmo em momentos em que não há sinais de descontrole das contas públicas. Cria-se um cenário em que se eleva os objetivos do mercado financeiro aos mais prioritários da sociedade, colocando a situação das contas públicas e as metas fiscais como fins em si mesmo, deixando em segundo plano ou abstraindo as necessidades de investimentos nas áreas de saúde e educação e para se combater a pobreza e a fome. 

As imposições e manifestações do mercado são potencializadas quando se tem um governo compromissado não só com a fração representada pelos interesses do capital financeiro, mas com outros capitais e também com a dignidade do povo brasileiro. 

A melhora da vida da população exige minimamente planejamento, pessoal técnico e investimentos em políticas e programas sociais, o que acaba por dividir as atenções do governo e da estrutura estatal entre os diversos interessados pelo orçamento público.

Entretanto, no fundo, a grande preocupação do capital financeiro não é a disputa em si sobre o orçamento público, mas sim o que as destinações desse orçamento podem resultar, como por exemplo uma sociedade menos desigual, uma classe trabalhadora com mais dignidade que possa inclusive angariar forças e lutar por coisas maiores.

Vale lembrar o pacote eleitoreiro que o governo Bolsonaro fez nos meses que antecederam as eleições de 2022 para ganhar votos. O pacote aumentou demasiadamente os gastos públicos e as reações foram apenas críticas mansas diante de tamanha quantidade de gastos. Há claramente uma indignação seletiva. 

A partir das manifestações do capital financeiro podemos enxergar uma disputa de projeto de país. As lutas dos nossos povos e dos movimentos sociais precisam estar fortalecidas e apropriadas dos temas centrais da nossa sociedade, para assim enfrentar as investidas do mercado e demandar do governo a implementação das políticas necessárias para a dignidade de nosso povo. 

*Marcelo Álvares de Lima Depieri é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e professor titular de economia da Unip.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires