Coluna

Mudar pro Crusp me livrou de morrer

Imagem de perfil do Colunistaesd

Ouça o áudio:

Fomos pro Campo de Marte, num sábado de manhã e voamos uma hora. O motor do avião parecia motor de fusca velho - Luciano Araújo/Flicker/CC
Seria eu, o morto, confundido com o guerrilheiro

Daqui uns dias vou participar de um encontro com uma turma boa. Detalhe: todo mundo com mais de 70 anos. São mais de duzentos, pelo que sei até agora. O que nos une?

São todos ex-moradores – claro, ex-moradoras também – do Conjunto Residencial da USP, o Crusp, entre os anos de 1963 e 68.

Na madrugada de 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois que a ditadura decretou o Ato Institucional número 5, mais conhecido como AI-5, o Crusp, com uns 1.300 moradores, foi invadido por militares e fomos levados pro Presídio Tiradentes.

Bom... antes de me mudar pro Crusp, eu morava num apartamento no centro de São Paulo. Um vizinho, o Feres, gostava de pilotar teco-tecos, aqueles aviões em que só cabem o piloto e um passageiro. Ele me chamou pra dar uns voos e eu topei.

:: Meus tempos de barbeiro ::

Fomos pro Campo de Marte, aeroporto na zona norte de São Paulo, sede do aeroclube, num sábado de manhã e voamos uma hora. O motor do avião parecia motor de fusca velho, ta-ta-ta...

Parecia que ia falhar e a gente cairia. Mas gostei e, daí em diante, todos os sábados ensolarados íamos passear de teco-teco.

Até que no início de 1968, consegui vaga no Crusp... Avisei ao Feres que não voaria com ele no sábado seguinte, pois estava mudando dali. Ele ficou meio chateado, mas disse que arrumaria outra pessoa para voar e dividir as despesas do voo.

Na segunda-feira, vi matérias em jornais dizendo que Carlos Marighella, considerado o inimigo número 1 da ditadura, tinha fugido de avião pro Paraguai. Um teco-teco decolou do Campo de Marte, no sábado, com um piloto do aeroclube e um passageiro desconhecido, que parecia o Marighella. E não voltou.

Ficou uma especulação o tempo todo, sobre a fuga do guerrilheiro mais procurado pela ditadura, até que na quinta-feira veio a notícia: não era o Marighella. E o avião não foi pro Paraguai. Era o Feres, meu velho amigo, que tinha ido com um passageiro novo dar um passeio de avião, sobrevoando o litoral e, na volta, deve ter pego uma corrente de ar descendente, que empurrou o teco-teco pra baixo e fez que ele entrasse em cheio na Serra do Mar.

O piloto e o passageiro, o suposto Marighella, morreram na hora. Aí vi: seria eu quem deveria estar naquele voo. Mas como me mudei pro Crusp, não fui. Se tivesse ido, seria eu, o morto, confundido com o guerrilheiro.
 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos. 


**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Daniel Lamir