Palavras e a imagens estão esgarçadas, laceradas, estripadas e cuspidas como um escândalo nos rostos
Gaza é Auschwitz. Não pela técnica, não pelos vilões, não pelas vítimas, não pelos números, não pelo lugar. Gaza é Auschwitz pelo objetivo.
Gaza é Auschwitz. Com um senão: o genocídio em Auschwitz não estava sendo gravado, fotografado, televisionado. Somente muito tempo depois soubemos de Auschwitz. Em preto & branco. Gaza está exposta como uma fratura. Em cores.
Não havia inocentes em Auschwitz. Os carrascos nunca disseram isso assim de maneira tão crua e brutal mas certamente acreditavam que todos eram culpados.
Não há inocentes em Gaza. Os carrascos já disseram – e repetiram - isso de maneira crua e brutal. Disseram também que são animais e que como animais devem ser tratados e levados ao matadouro.
As palavras e as imagens estão esgarçadas, laceradas, estripadas e cuspidas como um escândalo no rosto de todos, todos os dias, todo o tempo. O maior de todos os escândalos. E ninguém terá à mão a desculpa empunhada após Auschwitz:
“Eu não sabia”.
Todos sabem e sabem muito bem que são responsáveis até o ponto mais profundo da medula.
Não tem explicação decente qualquer postura contemplativa. É esforço vão tentar cobrir os olhos para que Gaza não nos fira com seus olhos vazados.
Porque não se trata do horror que naturalizamos no cotidiano brasileiro de variados horrores. Não é a nossa resignação perante à miséria nos faróis ou ao gatilho fácil das PMs ou as tantas chacinas que adornam as manchetes.
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Porque Gaza não é o horror. É O Horror.
E mesmo assim, em maiúsculas, continua sendo uma versão amena e parca porque não existe termo suficiente para abarcar sua imensidão.
Auschwitz foi libertada pelo Exército Vermelho.
Naquela tarde de sábado, 28 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas entraram no campo de extermínio.
Anatoly Shapiro, o primeiro oficial russo a pisar em Auschwitz, disse que o cheiro era insuportável. Cadáveres ocupavam os beliches e, debaixo deles, esqueletos vivos se arrastavam.
Qual será o cheiro de Gaza? Qual o cheiro de 10 mil cadáveres? Sob quantas toneladas de cimento e pedras estão os esqueletos de Gaza?
Não há Exército Vermelho para libertar Gaza.
Não há exército nenhum.
Quem se exprime perante Gaza são as Forças Armadas da Covardia, as Legiões da Conivência, as Milícias da Cumplicidade, os Pelotões da Inépcia.
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Não são somente Biden e seus cupinchas Macron, Scholz e Sunak e o patético estafeta de Washington, Anthony Blinken, que têm sangue nas mãos.
Outros comparsas estão manchados.
Gente que bombardeia Gaza diuturnamente em TVs, rádios, jornais e portais.
Não é possível esconder o vergonhoso papel da mídia ocidental que percebe como simétrico um conflito sem qualquer simetria; que vê como suspeitas as informações que vem de Gaza e como plenamente confiáveis as de Telavive; e que chama de “guerra” aquilo que é carnificina.
É outro massacre. E Gaza será mais uma desonra para carregar.
Quando tanto se fala em genocídio, chegou a hora de falarmos também em informacídio. E apontar como o segundo ajuda o primeiro.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo