Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo José Cláudio Souza Alves explica as ramificações da estrutura miliciana na segurança pública e na política fluminense que pavimentaram a indicação de Marcus Amim como chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro. Em meio a polêmica modificação da lei orgânica na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) para permitir a nomeação do novo secretário, há o interesse de políticos conhecidos da Baixada Fluminense.
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Segundo Alves, a criação de um destacamento da Polícia Militar em Belford Roxo garantiu não só o controle territorial vinculado à estrutura miliciana como a eleição dos deputados estadual e federal mais votados do Rio de Janeiro em 2022, respectivamente, Márcio Canella, responsável pela indicação de Amin, e Daniela Carneiro, ex-ministra do Turismo de Lula (PT), ambos do União Brasil.
“A estrutura miliciana deixou de ser algo único do bolsonarismo, da extrema-direita. Esse cenário deixou de existir. Hoje a milícia é interessante para qualquer grupo político que queira obter votos e controle territorial”, afirma o sociólogo.
O professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro "Dos Barões ao extermínio" também questiona o uso termo “narcomilícia” para ocultar a histórica presença da estrutura de segurança pública dentro das milícias.
“Famílias como a Silva Braga, do Zinho, do Ecko, do Carlinhos Três Pontes, se perpetuam e tem essa hierarquia graças ao suporte, aos acordos, que vão rolar com a estrutura de segurança pública. Sem isso eles não existiriam. Quando não é mais interessante, matam como foi o caso do Ecko”, afirma Alves que estuda a evolução das milícias há 30 anos.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Houve uma reconfiguração das milícias nos últimos anos? A escalada de violência que estamos vivendo no RJ tem a ver com essa movimentação?
José Cláudio Alves: Desde a morte do Ecko em junho de 2021 foi aberto uma espécie de edital da segurança pública do tipo "quem vai me dar mais grana, mais votos, mais ganhos em termos de controle territorial" para permanecer como grupo armado no Rio de Janeiro. Quem cumpre a agenda do edital é a própria estrutura de segurança pública e os grupos políticos vinculados a essa estrutura de poder do Estado. Essa dinâmica é nítida.
De lá para cá, o que tem sido feito é uma lógica de confronto e mortes. Nos casos do tráfico são mortes maciças, operações com padrões maiores de mortos. Isso que nós sabemos, fora as operações eu chamo de chacinas invisíveis. Que não são noticiadas.
Em relação às milícias também é adotada uma estratégia de execução de lideranças no mesmo sentido. É mantido o padrão da execução como se isso fosse resolver, mas na verdade eles sabem que cada morte potencializa os ganhos do suborno, as negociações em torno de quem vai ser o próximo a controlar o território. Então tudo isso está acentuado.
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Essas disputas se tornaram mais complexas, com alianças que anteriormente não se imaginaria. Há uma mutação, não só uma intensificação de disputa entre os grupos armados, mas começo a enxergar mutações.
A aproximação da milícia do Zinho com o Comando Vermelho (CV) é a grande novidade ao meu ver. Essa novidade traz elementos importantes. A própria estrutura policial vira uma espécie de fiel da balança para dizer quem vai ganhar o edital em função do ganho, da grana.
O que está por trás da relação de grupos paramilitares com outras organizações criminosas como o tráfico?
Apesar da dimensão tão forte e nítida da milícia com a estrutura policial, ela pode se transformar e dizer que tem interesse em ganhar mais com a estrutura do tráfico.
Porque a milícia é isso, os acordos podem se transformar por conta de interesses próximos em um universo costurado junto à estrutura de Segurança Pública.
O que estou falando tem a ver com a tomada de territórios pelo CV em áreas milicianas, a tomada de Rio das Pedras, Gardênia Azul Muzema, Itanhangá, áreas que historicamente estavam na mão da milícia hoje sofrem sua investida, o que sinaliza que o tráfico está pagando melhor e a estrutura policial aceita esse acordo e vê nisso uma vantagem.
Um outro cenário é a estratégia de aproximação da milícia do Zinho, o Luis Antônio da Silva Braga, com o CV no sentido de buscar mais força, mais proteção, mais segurança, na relação que ele tem com disputas internas dentro da própria estrutura miliciana como um todo.
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Houve várias rupturas no grupo hegemônico que o Ecko mantinha e isso se perdeu. De fato, nunca foi uma estrutura muito unificada, ela comportava vários grupos, mas havia um arranjo mais estável. Acho que a instabilidade está no fato da estrutura política associada à segurança pública dizer "permanece quem me dá mais" e isso vai mexer com todo esse cenário.
Tudo tem a ver com o cenário de 2021 da morte do Ecko, irmão do Zinho, que vai passar pelas eleições gerais de 2022. E que hoje sinaliza para as eleições municipais de 2024. Eleições decisivas já que a nossa estrutura política desde sempre é orientada e definida em grande parte pela estrutura das eleições municipais.
Esse protagonismo recente do CV tem a ver com a hegemonia miliciana, que cresce tanto, se complexifica e vai abarcar um cenário mais diversificado de disputas internas, de ganhos a partir da própria estrutura policial que passam a se configurar a partir da estrutura miliciana.
O que a troca do secretário de Polícia Civil representa nesse sentido?
As movimentações do governador do Estado do Rio de Janeiro vão incidir sobre essa estrutura de segurança pública que é o grande operador de tudo isso. Quando ele faz a mudança de chefia da Secretaria de Polícia Civil, e faz isso num cenário de negociações com os deputados da sua própria base, que são de extrema-direita, do “bandido bom é bandido morto”, da bancada da bala, que possuem uma conexão muito intensa com a estrutura miliciana.
Para poder acomodar o interesse do Marcos Amim, que assumiu a Secretaria [de Polícia Civil], modificaram uma Lei Orgânica da Polícia. E quem faz essa indicação foi o Márcio Canella, deputado estadual mais votado do Rio de Janeiro e diretamente vinculado à estrutura miliciana lá de Belford Roxo, que divide o universo do poder miliciano com o atual prefeito Wagner Carneiro que, por sua vez, teve a sua esposa ministra do Turismo do governo Lula a partir do seu poder dentro dessa estrutura.
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Logo, a estrutura miliciana deixou de ser algo único do bolsonarismo, da extrema-direita. Esse cenário deixou de existir. Hoje a milícia é interessante para qualquer grupo político que queira obter votos e controle territorial.
Quais os elos da estrutura miliciana na segurança pública e na política fluminense hoje?
Em 2021 lá em Belford Roxo houve a criação de um destacamento do 39º Batalhão [da Polícia Militar] numa região chamada Complexo do Roseiral, uma região de controle hegemonizado pelo Comando Vermelho. Iniciou-se um conjunto de operações de confrontos.
Então um acordo do Wagner Carneiro (Republicanos) com o Cláudio Castro [então governador em exercício após o impeachment de Wilson Witzel] permitiu a configuração de um controle político com base na estrutura de segurança pública naquele município. O que deu à esposa do Wagner Carneiro, a Daniela do Waguinho, a maior votação para deputado federal do Estado do Rio de Janeiro. Ela teve mais de 50% de votos da cidade e deu a Márcio Canella a maior votação para deputado estadual.
Houve uma eficiência muito grande nessa jogada da Secretaria de Segurança Pública ao criar o destacamento do 39º Batalhão e controlar uma área muito grande e importante que é Belford Roxo.
Agora esse negócio todo que rendeu votos está progredindo na sua dinâmica com a indicação do Marcio Canella [de Amin para chefiar da Secretaria de Segurança Pública], que ganha força na disputa também com o próprio Wagner Carneiro na estrutura política de Belford Roxo, uma cidade com meio milhão de habitantes, com um peso muito significativo.
O Amin vem com essa base armada estatal e não-estatal, principalmente com destaque para a estrutura com certeza miliciana, mas que o CV acaba se sujeitando já que ele vive um acordo, uma negociação, dessa dinâmica de confrontos ali a partir dos interesses desse grupo. Então esse é o outro cenário ligado ao CV já em uma outra dimensão que vai chegar até o governo do Estado.
A mídia comercial e o governo do Rio têm se referido a essa combinação de organizações criminosas como “narcomilícia”. Qual a origem desse termo?
É um termo que vem sendo construído e que é muito útil para essa estrutura de segurança pública. O que está por trás disso é uma operação em outubro de 2020 que juntou a Polícia Rodoviária Federal com a Polícia Civil no Rio de Janeiro e matou cinco pessoas em Nova Iguaçu, e 12 pessoas em Itaguaí em dois dias. O conceito de narcomilícia já tinha aparecido anteriormente, mas nesse evento ele foi mais ostentando pelo então secretário da Polícia Civil Allan Turnowski [ex-chefe da Polícia Civil do RJ].
Esse conceito consegue três grandes jogadas em um único movimento.
Primeiro ele vai dizer para todo mundo que ‘nós da Segurança Pública do Rio de Janeiro combatemos a milícia, nos acusam de ser envolvidos com as milícias, mas nós combatemos elas sim, estamos matando milicianos’.
A segunda jogada é dizer que a milícia é de única e exclusiva autoria do tráfico de drogas, já que são narcomilicianos, são traficantes que constroem essa milícia. Logo, você oculta, esconde, apaga, disfarça completamente a histórica presença da estrutura de segurança pública do Estado dentro das milícias. Por último, há um mês da eleição [municipal de 2020], o recado politicamente era ‘bandido bom é bandido morto’. Então você esconde toda essa estrutura que continua funcionando perfeitamente com seus interesses.
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Essas famílias como a Silva Braga, do Zinho, do Ecko, do Carlinhos Três Pontes, se perpetuam e tem essa hierarquia graças ao suporte, aos acordos, que vão rolar com a estrutura de segurança pública. Sem isso eles não existiriam. Quando não é mais interessante, matam como foi o caso do Ecko.
Então o conceito de narcomilícia serve para operar essa jogada, matar civis. É um cenário muito fluido, ele está se transformando de acordo com os interesses que estão em jogo.
O que diferencia o ataque aos ônibus de outras demonstrações de poder de grupos milicianos?
Com o incêndio dos ônibus é um outro cenário. É um cenário diferente do que vimos lá em 2020, quando milicianos do Zinho absorveram as mortes, que em parte eram associadas ao Tandera [Danilo Dias Lima, miliciano rival do Zinho], e não houve uma resposta como a atual.
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A resposta atual, dos ônibus incendiados, conta com uma tecnologia que ao meu ver é típica de grupos do tráfico de drogas, como o Comando Vermelho que domina a tecnologia de incêndio de ônibus numa proporção e velocidade muito grande.
Disseram que ele [Zinho] armou esse incêndio para escapar, fugir do cerco policial, pode ser. Não tem como afirmar. Mas o recado que é nítido para mim com esses incêndios é que ele está dizendo que não vai pagar o pato sozinho nessa história. Não vai ser a bucha de canhão, o cara que vai ser usado nessa guerra como o grande responsável, o culpado que vai ser morto e com isso vai resolver o problema da segurança pública no Rio.
Qual sua avaliação sobre a atuação do governo federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro?
O ministro Flávio Dino vem com discurso bonito, todo mundo fica impressionado. Que vai colocar a Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, as forças armadas, regular portos, aeroportos, rodovias. Mas se mantendo numa distância confortável para não respingar nele toda essa matança, todo esse comprometimento da estrutura de segurança do Rio.
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Não há interesse em confrontar a base política do Cláudio Castro, ou do Tarcísio em São Paulo, porque o governo federal tem interesse em negociar com a direita e a extrema-direita no Congresso nas suas propostas. Então não se cria nenhum tipo de constrangimento, de contradição em relação a isso e fica tudo muito acomodado. Ao meu ver é um cenário muito mais complexo, muito mais duro e difícil de se movimentar.
Edição: Mariana Pitasse