“Eu tenho diabetes, e só descobri por interesse de um médico cubano. Porque enquanto eu me tratava com um médico brasileiro, era aquela coisa de consulta e já era, mal encostava em mim ou conversava comigo. Por isso nós, enquanto periferia, queremos os médicos cubanos, porque eles são gente como a gente.”
O relato é da Adriana Correa Farias, moradora do bairro Cruzeiro, em Porto Alegre, ao comentar sobre o abandono que sentiu ao saber que não seria mais atendida pelo seu médico com o fim do programa de cooperação do Programa Mais Médicos em novembro de 2018.
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A moradora faz parte do grupo que integra o Fórum Social das Periferias de Porto Alegre (FSPPA), que reivindica a volta dos médicos cubanos, tal como prometido na retomada do Programa Mais Médicos. Segundo o grupo, os médicos cubanos atuam de maneira mais humanizada, por isso reivindicam seu retorno aos territórios.
“Eles não são médicos de gabinete, eles são médicos populares, eles se interessam, eles interagem com a família toda, não só com o paciente. E aquela coisa deles chegarem até a casa da família e sentarem para tomar café, da família convidar para almoçar, de tanto que eles interagem com a comunidade, eles deixam a gente a vontade tanto para dizer todos os nossos problemas de saúde, quanto para falar os problemas particulares”, acredita Adriana.
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Em setembro de 2022, foi construída uma carta compromisso solicitando este retorno ao então candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “A nossa proposição era essa, que se ele fosse presidente da República, ele tivesse compromisso de trazer os médicos cubanos de novo para dentro dos territórios da Grande Cruzeiro, de todas as comunidades de Porto Alegre. Então, a gente trabalhou nisso e o elegemos presidente. Agora ficou a devolutiva do governo, do presidente”, afirma Júlio Celso da Veiga Pedroso, liderança comunitária do bairro Cristal.
A carta foi entregue para os representantes da campanha de Lula em uma Plenária que ocorreu no Centro Social Amavtron com a presença da deputada estadual Maria do Rosário (PT). Na carta o movimento destaca os impactos do Mais Médicos, em especial os médicos cubanos.
“Nós partimos da cobrança daquilo que foi acordado lá atrás com os companheiros aqui na Cruzeiro. A primeira coisa foi cobrar do governo quando que viriam esses médicos e nós continuamos cobrando. Mas se abre um leque também dentro dessa pauta por outros problemas que nós temos, como, por exemplo, a falta de médicos em outras áreas, enquanto os cubanos não vêm”, comenta Rosa Helena Cavalheiro Mendes, liderança comunitária do bairro Partenon.
Em 2020, de acordo com o Ministério da Saúde, no estado havia 80 médicos cubanos.
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Promessa do governo
Segundo o advogado e militante comunitário Fabiano Negreiros, é difícil saber um número exato de quantos médicos cubanos atuavam nos territórios periféricos de Porto Alegre, mas estavam em diversas regiões como Restinga, Cruzeiro, Campo Novo, Ipanema. "Atuaram nos territórios de periferia onde historicamente a gente não consegue ter efetivo de médico. O trabalho deles se deu nesses territórios, com uma qualidade e uma relação com os pacientes que a gente não tinha visto", aponta.
Em maio deste ano a ministra da Saúde, Nísia Trindade, participou do 1º Fórum Social das Periferias de Porto Alegre, no bairro Santa Teresa, com integrantes do movimento. Na ocasião, depois de ouvir as demandas dos moradores sobre saúde, ela salientou a abertura de mais de 500 vagas do programa Mais Médicos para o estado.
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A ministra reforçou a prioridade para médicos brasileiros, com políticas de incentivo e bonificação, e acrescentou que se discute a possibilidade de uma retomada da parceria com os médicos cubanos. Na ocasião, assinou um termo de compromisso para o retorno dos médicos cubanos, documento também firmado pelo representante do município, o secretário da Saúde Mário Sparta, e pela secretária adjunta da Saúde do governo do estado, Ana Costa.
No encontro ela ainda informou que do total de 15 mil vagas iniciais no edital do Mais Médicos para o Brasil, lançado em 20 de março, cerca de 500 estão reservadas para o Rio Grande do Sul.
“Agora a gente está vivendo esse momento de um governo que restabeleceu o programa Mais médicos, mas até agora não nos deu resposta, é isso o que nós queremos. Faz cinco meses que a ministra veio aqui na Cruzeiro e nós não temos resposta sobre quando os médicos cubanos irão voltar, sendo que a ministra disse que já estava em tratativa com Cuba para o retorno dos médicos ao Brasil”, afirma Fabiano.
Conforme pontua, o governo federal apresenta números que são problemáticos. "Não faz muito ele anunciou que teria um recorde de inscrições, em torno de 18 mil brasileiros inscritos no Mais Médicos. Só que se tu vai olhar, no próprio site do governo apresenta uma pesquisa com uma taxa de desistência de quase 50% dos médicos. Ou seja, os médicos enxergam o programa como um quebra galho, um corredor para eles passarem. Eles se afastam, pedem demissão do programa. Então na prática não são esses os números que o governo anunciou", ressalta.
Fabiano reforça que o que interessa é a medicina de família, ou seja, que os médicos venham para os territórios e fiquem ali trabalhando durante anos. "Essa proximidade que a medicina de família possibilita. E os médicos cubanos nos trouxeram isso de forma muito forte, além de fazer as visitas domiciliares eles andavam pelos territórios, nos becos, nas comunidades, uma relação muito próxima. Isso está muito vivo na memória das pessoas. Por esse e outros motivos estamos nos mobilizando, que o governo nos traga de volta os médicos. A gente só quer o que nos tiraram."
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Os integrantes do FSPPA estão realizando uma campanha nas redes sociais cobrando um posicionamento do governo federal. “Então por isso que o Fórum foca muito no retorno dos médicos cubanos, agora estamos nesse momento de cobrança mesmo."
“E a palavra é cobrança mesmo, porque de fato a gente está falando de pessoas que não mediram esforços pra eleger o governo, queremos o que o outro governo nos tirou”, afirma Fabiano.
Sobre o Fórum Social das Periferias de Porto Alegre
O Fórum Social das Periferias de Porto Alegre (FSPPA) é um movimento popular que congrega as várias comunidades periféricas e movimentos comunitários que compõem a cidade. “O Fórum não se encaixa em nenhum conceito habitualmente do ponto de vista político que a gente está acostumado a ver nos espaços de luta popular, de construção, enfim, do campo progressista que é onde a gente mais se identifica. Ele vem numa lógica de construção porque ele surge justamente a partir desse sentimento de observar a falta de espaço para nós termos voz, nós que militamos nas bases”, conta Negreiros.
Segundo os representantes do FSPPA, o movimento se organiza de maneira horizontal e não tem participantes que ocupam a posição de coordenador ou de diretor. “O Fórum não é um espaço daquilo que a gente está acostumado a ver na luta do nosso campo, e muito no sentido, com todo o respeito, mas as contradições que inclusive nos mobilizaram para fazer o Fórum existir. Ele tem uma lógica absoluta de construção coletiva, tanto que o nosso espaço único e maior de decisão são as plenárias”, explica Julio Celso da Veiga Pedroso, liderança comunitária do bairro Cristal.
Toda quinta-feira tem plenárias em que as pessoas que compõem o movimento podem participar com o objetivo de determinar seus rumos, além de se organizarem internamente através de grupos de trabalho com várias temáticas norteadoras. “O Fórum nasce, também, juntamente com as comunidades no anseio da qualidade dos serviços de saúde que foi prejudicada com a retirada dos médicos cubanos de dentro dos territórios da Grande Cruzeiro e de outros territórios das comunidades de Porto Alegre. Então, o Fórum nasceu já com essa bandeira de trazer novamente os médicos cubanos de volta aos territórios, algo que foi retirado no governo Bolsonaro”, comenta Julio.
No dia 15 de setembro, o Brasil retomou acordo de cooperação com Cuba para produção de biofármacos que havia sido interrompido pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Na ocasião, a ministra informou que a retomada do programa Mais Médicos não prevê um acordo entre países, mas uma “chamada”, com prioridade para médicos brasileiros formados no país e no exterior e médicos estrangeiros como terceira opção. Segundo ela, os médicos cubanos, ou de qualquer outra nacionalidade, podem participar da seleção, com foco em “preencher os vazios assistenciais' no Brasil.
O Brasil de Fato RS questionou o Ministério da Saúde sobre a questão dos médicos cubanos. Quando obtivermos a resposta publicaremos.
* Com a colaboração de Maria Helena dos Santos.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko