Em semana intensa no Congresso Nacional, o governo deu alguns passos em seu objetivo de zerar o déficit das contas públicas em 2024. Na noite de quarta-feira (25), a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que prevê a taxação dos fundos de alta renda enviados ao exterior, tanto os exclusivos quanto os offshores. A tributação ataca a evasão de recursos para bancos localizados em paraísos fiscais e para fundos especiais de investimentos dos super-ricos.
Após vários adiamentos e alguns ajustes no texto, a maioria dos votos foi alcançada com apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), poucas horas depois de emplacar mais um aliado no alto escalão do governo Lula. Carlos Antônio Vieira Fernandes ficou com a presidência da Caixa Econômica Federal no lugar de Rita Serrano, que foi demitida.
Sem alterações acatadas no texto-base, o projeto teve 323 votos favoráveis e apenas 119 contra, além de uma abstenção, incluindo votos de opositores. Apenas o PL, por exemplo, somou 12 votos favoráveis. Mesmo assim, os deputados debateram a proposta no plenário entre visões econômicas bastante opostas.
Defensor da preservação dos patrimônios de famílias que possuem investimentos no exterior, o deputado federal Gilson Marques (NOVO-SC) alegou que a medida desestimularia o investimento empresarial e poderia gerar evasão de divisas. Argumento refutado por parlamentares da base governista, que apontaram que a incidência recairá sobre fundos cujo aporte mínimo é de R$ 10 milhões e que seriam um passo importante rumo à justiça tributária no país.
"Nos EUA, quem abre um paraíso fiscal offshore fora de lá tem que pagar 40%, na Alemanha 26,37%, na França 30%. Aqui não, o que é um escândalo. Eu estou falando de gente que recebe por mês algo em torno de R$ 308 mil e o 0,01 é quem recebe R$ 20 milhões por ano. Sabe quanto pagam de imposto de renda esses do 1%? Apenas 5,43%", contra-atacou Lindbergh Farias (PT-RJ).
O total do patrimônio líquido que circula fora do país, somente de fundos exclusivos que pertencem a cerca de 2500 proprietários, é da ordem de R$ 1 trilhão, de acordo com o relator do projeto, o deputado Pedro Paulo (PSB-RJ). "Essa não é uma mudança trivial. A arrecadação para o ano que vem é da ordem de R$ 20 bilhões, R$ 13 bilhões da arrecadação dos fundos exclusivos fechados e R$ 7 bilhões, podendo ser um pouco a mais, dos fundos offshore", declarou em plenário.
Ao contrário do que argumenta Gilson Marques e outros colegas, a participação nos fundos especiais requer uma série de exigências que afastam os pequenos empreendedores e investidores sem experiência, mantendo apenas os grandes. Já as offshores são instituições financeiras sediadas fora do Brasil, muitas vezes em chamados paraísos fiscais, onde são destinados recursos com objetivo de sonegar impostos ou para encontrar tributações mais favoráveis às suas operações.
É nesse segundo aspecto que se apega o advogado e economista Alessandro Azzoni, conselheiro da Associação Comercial de São Paulo. "Hoje, há offshores que você usa paraísos fiscais para obter vantagens fiscais e comerciais. Por exemplo, tem uma ilha na Irlanda que tem quase todas as empresas marítimas da Europa sediadas lá, porque ela tem a bandeira do comum europeu. Ao invés de pagarem 20 mil dólares de imposto, as empresas pagam 2 mil dólares. Então, é uma vantagem fiscal, mas não para lavar dinheiro, não é uma sacanagem", acredita.
Nesta quinta-feira (26), o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), disse que a expectativa é aprovar o projeto nas próximas duas semanas. "Nós trabalharemos para que não [haja mudança], porque eventual modificação resultaria em retorno à Câmara dos Deputados e não teria tempo hábil para isso. Caducaria a medida provisória", afirmou Randolfe, que considera o projeto um dos "pilares" da arrecadação do governo.
Reforma Tributária recebe ajustes na chegada ao Senado
Mais cedo, no mesmo dia 25, o texto da reforma tributária foi apresentado pelo relator da proposta no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), que assinou o protocolo do documento junto à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) eletronicamente diante de jornalistas. As medidas, que ainda devem passar por algumas mudanças dos senadores, representam outro carro-chefe para os planos do ministro da Economia Fernando Haddad, e devem ser votadas em plenário até 7 de novembro.
Braga promoveu diversas alterações no projeto de emenda constitucional aprovado na Câmara em julho deste ano, inclusive com a criação de um teto de cobrança. O objetivo é conferir previsibilidade nas taxas futuras, usando o histórico recente como referência, conforme explica o próprio senador:
“Nós criamos um teto de referência de 2012 a 2021, aí vai implantar por exemplo o CBS [Contribuição sobre Bens e Serviços, um dos dois novos tributos]. Nos 4 primeiros anos de CBS vem implantando, no quinto ele é auferido a carga [arrecadada] e compara com a referência [da média dos últimos 10 anos]. Se ela tiver extrapolado, ela ajusta para baixo. Da mesma forma no IBS [Imposto sobre Bens e Serviços, outra novidade]”.
Com a unificação dos tributos atuais em dois impostos sobre o valor agregado, os IVAs, o governo quer acabar com a tributação em cascata e criar mecanismos para desonerar produtos que gerem menos impacto à saúde e ao meio ambiente. Também se configuram como esforços para reduzir a carga tributária para o conjunto da população - indicadores do Banco Mundial e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que 90% dos brasileiros terão uma parcela menor dos seus ganhos taxados por esses tributos.
Uma das iniciativas para reduzir a progressividade dos impostos atuais é a desoneração de produtos da cesta básica nacional, que deverá considerar a diversidade regional e cultural de alimentação no país. A ideia é garantir alimentação saudável e adequada, considerando a diversidade do que se consome em cada região e barrando o lobby de produtores de outros tipos de alimentos que também tentam se enquadrar na alíquota zero.
Além de sugerir dispositivos de restituição de impostos, os "cashbacks" na cobrança de energia elétrica para famílias de baixa renda, o governo quer acabar com a guerra fiscal entre os estados. Por isso, prevê a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), cujos aportes da União ainda estão sendo negociados com prefeitos e governadores.
"O FDR sofrerá um aumento de R$ 20 bilhões. Sairá de R$ 40 bilhões [conforme previa o texto enviado pelo governo] para R$ 60 bilhões. Ele crescerá a razão de R$ 2 bilhões a partir de 2034 até 2044, sendo corrigido pelo indicador do IPCA [Índice de Preços ao Consumidor]", explica Braga, que apontou que, em alguns anos, alguns estados poderão faturar até o dobro do que recebem atualmente via ICMS, que será extinto.
Um conjunto de inovações que correrá ao lado de várias leis complementares ainda pendentes de serem sugeridas e aprovadas após o destaque. "Lembrando que a reforma tributária vai ter ainda muito chão, muita pauta para respaldar, para regulamentar todos os tributos. Nós temos [atualmente] no código tributário nacional 66 leis complementares", pontua Azzoni, que enxerga um cenário mais otimista para o governo. "Ele quebrou aquela base direita ou esquerda. Alguns partidos de centro-direita já compõem o governo, recebem emendas e votam com o governo. Dizem que é pró-Brasil mas votam com o governo."
Desoneração da folha de pagamento é renovada
Uma derrota para o governo foi consolidada também no dia 25 com a aprovação no Senado da renovação da desoneração da folha de pagamento para 17 setores até o fim de 2027. Se sancionada por Lula, a contribuição previdenciária sobre os salários dos empregados de empresas de categorias como serviços de call center e TI, transportes rodoviários e de carga e de alguns setores da indústria serão substituídos por uma alíquota sobre a receita bruta do empreendimento, que varia de 1% a 4,5% de acordo com o serviço prestado. Os demais segmentos seguirão auferidos em até 20%.
A base governista ainda conseguiu barrar tentativas de colocar outras modalidades de transportes e de reduzir a contribuição previdenciária para todos os municípios, não somente os de menor arrecadação. Assim, tirou da pauta uma proposta que poderia reduzir a cobrança de impostos de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro.
A aprovação da matéria contou com votos de senadores da base governista, que se baseiam em dados que mostram impactos positivos para os setores beneficiados. O Movimento Desonera Brasil, que reúne representantes desses setores, afirma que 1,62 milhão de empregos formais foram gerados após a iniciativa criada em 2011.
Nilza Pereira de Almeida, coordenadora geral da Intersindical critica o timing da proposta, a qual encara como uma forma de pressão política sobre a equipe econômica do governo. “É muito injusto o Senado discutir a desoneração agora se tem um projeto que está discutindo a unificação dos impostos, que vai trazer redução para algumas empresas. É uma precipitação absolutamente política a votação dessa medida agora”, afirma.
A sindicalista também aponta que os setores beneficiados não são os campeões de geração de empregos, fazendo menção a estudo do Ipea publicado no início de setembro. Segundo o instituto, sete setores concentram mais da metade do total de ocupados no país, puxado pelo comércio (15,9 milhões), exceto de veículos automotores e motocicletas; agricultura, pecuária, caça e serviços relacionados (7,9 milhões); educação (6,6 milhões); serviços domésticos (5,8 milhões); administração pública, defesa e seguridade social (5,1 milhões); atividades de atenção à saúde humana (5,1 milhões); e alimentação (4,9 milhões).
“Não acho que seja positivo renovar para setores que não são geradores de empregos, é só para manter um nível de empresas funcionando. A questão deveria ser a reindustrialização do país, que vem se desindustrializando e perdendo postos de trabalho. A discussão deveria ser como nós vamos tratar os trabalhadores que são substituídos pelas novas tecnologias, como vão ser tratados os trabalhadores que estão sendo mediados por aplicativos”, afirma.
Já para Azzoni, a medida é positiva, mas passível de ser ajustada para atender ao seu maior objetivo que é a ampliação de postos de trabalho. “Como a empresa pode contratar e ainda ter que pagar tributo a folha de pagamento que ela vai gerar de emprego? Isso é absurdo, só no Brasil mesmo temos uma situação dessas. (...) Desonerar folha de pagamento eu acho justo porque você gera empregos, agora os outros setores precisam ser revistos. Se está tendo benefício, se esse benefício fiscal está realmente trazendo o resultado esperado para a economia e geração de emprego”, considera.
Apostas esportivas também na mira
Outro projeto considerado fundamental para cumprir o esforço fiscal, também elencado no novo arcabouço fiscal e no projeto de lei orçamentário, é o que regulamenta as apostas esportivas, como as chamadas bets. O texto do Executivo já passou pela Câmara no final de setembro e aguarda análise da Comissão de Assuntos Econômicos no Senado.
“Acho que essa questão das casas de apostas e bets vai avançar, uma porque os lucros dessas operações acabam ficando nos países onde elas estão sediadas, então a operação gira no Brasil, mas a tributação se dá toda fora. (...). E nós sabemos que jogo de apostas tem que ter recolhimento de tributos, gira muito, são milhões e milhões de reais ou até de dólares, isso representa uma arrecadação muito importante para o governo”, exalta o advogado.
Ao longo das últimas semanas, Haddad tem dado declarações em defesa desta e de outras medidas importantes ao governo que dependem da aprovação da Câmara ainda este ano, considerando um calendário apertado em novembro. Já está atrasada a votação da Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) de 2024, que deveria ter ocorrido no primeiro semestre, e ainda há o projeto da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2024, que ainda aguarda despacho da Mesa do Congresso Nacional.
Mesmo assim, o ministro mantém o otimismo e espera trazer boas notícias para o mercado brasileiro, principalmente com a aprovação da reforma. “Se o sistema tributário ajudar, aquilo que hoje pode parecer inconveniente vai acabar sendo muito convidativo para os investidores estrangeiros. Nós temos a possibilidade, inclusive de exportar mais, exportar produtos industrializados, se nós adotarmos um sistema tributário que não penalize o investimento e as exportações, como o nosso faz hoje”, afirmou em coletiva de imprensa no dia 20.
Edição: Thalita Pires