A possível migração de famílias de mais alta renda parece ter sido potencializada
Após a divulgação dos primeiros dados sobre perfil e dinâmica populacional do Censo 2022, Belo Horizonte teve destaque na lista das capitais que perderam população, com um saldo negativo de 59.591 habitantes entre 2010 e 2022. O debate público, puxado pelos meios de comunicação interessados na difusão do tema, centrou-se na questão sobre o que explicaria a perda populacional do município, importante capital em torno da qual havia se estruturado a terceira mais populosa aglomeração metropolitana do país nos últimos 50 anos. Os "diagnósticos de opinião" foram vários, mas pouco fecundos para um tema que requer densidade interpretativa, considerando a complexidade dos processos que se entrecruzam. Os demógrafos ouvidos apontaram que este era um quadro já esperado para Belo Horizonte devido ao comportamento populacional em transição. Fatores econômicos também foram apontados como relevantes para analisar a última década, tais como: transformações no regime produtivo; ampliação da economia de serviços; ciclos intensos, porém mais curtos de prosperidade econômica em áreas urbanas; crescente dispersão do tecido urbano; impulso e consolidação de novas centralidades frente à corrida especulativa pela terra; entre outros.
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Talvez o diagnóstico mais controverso tenha sido o que colocava em dúvida a importância das metrópoles para o novo contexto social brasileiro. Se visto isoladamente, o percentual negativo de incremento populacional de Belo Horizonte (-2,5%) pode dar uma falsa noção de diminuição de sua importância como polo estruturante, dinâmico e difusor de fluxos e redes. No entanto, o conjunto dos dados até agora disponíveis e colocados em perspectiva com a série histórica do Censo Demográfico aponta para a consolidação de uma tendência no arranjo metropolitano belo-horizontino e uma nova fase na reestruturação do espaço. Este texto apresenta algumas observações, puxando e cruzando os fios de interpretação, com dados de população (Censo 2022), renda/emprego (Fundação João Pinheiro) e parcelamento e fiscalização do solo (Agência RMBH), para tecermos um panorama da RMBH no momento atual. Destacamos que se tratam de conjecturas que precisarão ser ainda verificadas quando da publicação dos dados completos do Censo 2022.
A título de breve resgate histórico, o processo de metropolização de Belo Horizonte começou nos anos de 1940, com o início da industrialização na Cidade Industrial de Contagem e a corrida pela produção de loteamentos, configurando um estoque que por muitas décadas ainda conteria terrenos vazios. Belo Horizonte cresceu então na direção oeste, resultando rapidamente em um processo de conurbação, isto é, de continuidade da malha urbana com Contagem. Houve também, na mesma década, investimentos viários e de implantação do complexo da Pampulha a norte da capital, gerando outro eixo de expansão. Na década de 1970, com a grande onda de migrações campo-cidade e o vertiginoso crescimento de Belo Horizonte, municípios a norte receberam populações de baixa renda, que não conseguiam morar na capital, dando origem às periferias precárias. Em 1960, Belo Horizonte possuía 683.908 habitantes; em 1970 esta população quase dobrou, passando para 1.235.030 pessoas. Naquele ano, 75% da população metropolitana morava na capital. Este percentual vem diminuindo desde então e, em 2022, apenas 45% da população da região metropolitana mora na capital.
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O Censo 2022 (Tabela 1) evidencia o aprofundamento de algumas tendências que já vinham se manifestando na região metropolitana nas últimas décadas. Os dados mostram que entre 2010 e 2022 a RMBH ganhou 243.724 pessoas, um incremento de 5% durante todo o período, com um crescimento anual médio de apenas 0,41%. Considerando que o crescimento demográfico do país não foi muito maior do que 0,5% ao ano, entre 2010 e 2022, pode-se entender porque 16 municípios da RMBH cresceram abaixo de 1% ao ano. Apenas cinco municípios tiveram taxas de crescimento abaixo da média metropolitana: Contagem, Sabará, Belo Horizonte, Caeté e Baldim. Os três últimos municípios registraram perda absoluta de população, com destaque para o já mencionado decréscimo de quase 60 mil habitantes na capital.
A redução da população da cidade-polo de regiões metropolitanas tem sido também observada em outras metrópoles neste período, como Belém (-0,29 a.a), Rio de Janeiro (-0,13 a.a), Porto Alegre (-0,05 a.a) e Salvador (-0,4 a.a). Para a RMBH, os dados do Censo disponíveis ainda não nos permitem mensurar essas perdas e seus motivos, mas lançam-se aqui algumas hipóteses. De maneira geral, o crescimento vegetativo continuou seu processo de diminuição acentuada. O envelhecimento e o baixíssimo crescimento vegetativo – quando não negativo – provavelmente irão explicar a diminuição populacional em capitais tradicionais também, para além do fator migratório.
Mas não se descarta a possibilidade de ter havido perda de população para outros municípios, seja por parte de grupos de renda média e alta mudando-se para municípios como Nova Lima e Lagoa Santa, ou de grupos de mais baixa renda expulsos para outras periferias, como Esmeraldas, devido ao significativo encarecimento do preço da moradia (e de vida) na capital. A possível migração de famílias de mais alta renda parece ainda ter sido potencializada no período da pandemia, que observou um enorme aquecimento do mercado imobiliário em condomínios fechados fora da capital, e ainda pelo crescimento do chamado home-office entre os estratos de mais alta renda. Há ainda que se considerar o impacto do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) ao longo destes anos, que concentrou sua produção de Faixa 1 (mais baixa renda) predominantemente fora do município de Belo Horizonte, e o possível efeito de remoções relacionadas a obras de infraestrutura na capital. Os dados do índice Fipe-Zap mostram que, entre janeiro de 2011 e janeiro de 2022, houve um aumento de aproximadamente 83% no preço médio do m² dos apartamentos vendidos na capital, o que contrasta com a queda da renda média nesse período, marcado pela crise econômica, social e política. Um fator que pode ter atenuado maior perda de população foi o incremento das ocupações urbanas por moradia, que abrigam hoje mais de 10.000 famílias na capital, muitas oriundas de outros municípios da RMBH.
A perda populacional de Belo Horizonte (-0,21), polo do maior arranjo metropolitano mineiro, e o ganho populacional dos municípios de sua região metropolitana, como é o caso de 27 dos 34 municípios da RMBH, corroboram com a hipótese de que a RM está se reestruturando e não se desintegrando. A aglomeração metropolitana de Belo Horizonte, muito mais complexa hoje, constitui uma forma espacial com simultânea homogeneização e fragmentação seletiva, fato que reposiciona a metrópole no comando dos processos socioespaciais que realiza a metropolização no contexto mineiro, capilarizando-os e não apenas concentrando-os. Não se trata somente da abrangência territorial da metrópole que comanda a nucleação de um arranjo espacial, mas também da totalidade que se consegue apreender na realização de uma urbanização que integra, esgarça, penetra e regionaliza o espaço social. A perda populacional não é interpretada aqui como perda da importância da metrópole belo-horizontina, posto que quando analisada em conjunto com a dinâmica populacional, com os indicadores de renda e emprego e com as dinâmicas de parcelamento do solo, Belo Horizonte é o núcleo urbano que ainda tem bastante peso e dá sentido ao movimento e aos momentos de estruturação e reestruturação de sua região, como buscaremos elucidar a seguir.
Os dados referentes ao emprego e à renda nos municípios da RMBH corroboram com as tendências demográficas apresentadas nos parágrafos anteriores (Tabela 2). Por um lado, entre 2010 e 2021, houve uma diminuição no número de empregados no setor formal nos municípios da RMBH. Por outro, entretanto, essa queda não se distribuiu homogeneamente por toda a região. Belo Horizonte, com um saldo negativo de mais de 100.000 empregos, é a principal impulsionadora dessa tendência negativa. Desconsiderando os dados da capital, a RMBH apresentou um saldo positivo de aproximadamente 80 mil novos empregados no setor formal. É importante ressaltar que municípios como Nova Lima, Lagoa Santa e Brumadinho se destacam por terem experimentado um notável aumento no número de empregados no setor formal, tanto em termos absolutos quanto relativos. Isso fortalece a suposição previamente mencionada sobre a migração de grupos de renda média e alta para estes municípios.
Por sua vez, a renda per capita das famílias nos municípios da RMBH, no mesmo período, teve um aumento real2 de aproximadamente 10%, passando de R$ 622,21 em 2010 para R$ 682,68 em 2021. Mais uma vez, os municípios de Nova Lima, Brumadinho e Lagoa Santa apresentaram um aumento considerável em sua renda per capita, enquanto outros municípios importantes, como Belo Horizonte, Contagem e Betim, não conseguiram acompanhar esse crescimento e, pelo contrário, apresentaram uma diminuição em sua renda per capita. Destaca-se que, em nível nacional, este período corresponde a uma fase de crescimento econômico na primeira metade da década, seguida de grave crise econômica, política e social a partir de 2015. Além disso, cabe ressaltar os possíveis impactos da desaceleração do setor industrial (quando não da franca desindustrialização) sobre os municípios de base industrial mais consolidada.
Ao observarmos os dados de crescimento demográfico espacializados por município (Figura 1), observam-se ao menos três grandes tendências. Primeiro, o já mencionado crescimento no vetor norte e sul – em particular Lagoa Santa e Nova Lima – que atraem população de mais alta renda para loteamentos de acesso restrito. No caso de Nova Lima, destaca-se o transbordamento não apenas populacional, mas também de atividades econômicas no centro de negócios do Vale do Sereno (fronteira com Belo Horizonte), no Jardim Canadá e no projeto de uma nova centralidade metropolitana (C-Sul) no entorno do Alphaville (a sul do município). No caso de Lagoa Santa, a proximidade com a Cidade Administrativa do Governo do Estado, com o Aeroporto Internacional e com a região turística da Serra do Cipó ajudam a explicar sua enorme capacidade de atração populacional. Uma segunda tendência é de continuidade do crescimento periférico precário em alguns municípios, como Esmeraldas e São José da Lapa. A terceira tendência diz respeito ao contínuo crescimento do eixo industrial oeste, que combina crescimento econômico com expansão periférica em municípios como Juatuba, Mateus Leme, Igarapé, São Joaquim de Bicas, Sarzedo e Itatiaiuçu (este último com atividade minerária). No caso deste vetor oeste expandido, parece haver também um processo de periferização da pobreza, não necessariamente motivado pela expectativa de emprego, mas pela melhoria de acesso, disponibilidade de terra barata, permissividade e vacância de loteamentos irregulares antigos. Algumas destas tendências demográficas se refletem também nos processos de parcelamento do solo, como veremos.
Durante a última década, a RMBH testemunhou uma intensa onda de expansão por meio de condomínios fechados, projetos urbanos em grande escala, investimentos em infraestrutura e projetos do PMCMV. A Figura 2 mostra a área total de parcelamentos formalmente aprovados pela Agência RMBH por município (2000 a 2018), revelando que o parcelamento formal do solo urbano foi particularmente intenso no vetor norte. Esta área recebeu a maioria dos investimentos públicos e privados no período, tornando-se um novo local privilegiado para investimentos imobiliários especulativos, competindo com o vetor sul, mais estabelecido e exclusivo, cujos condomínios fechados de luxo continuaram a atrair grupos mais ricos. Usando a mesma escala de legenda para comparação, a Figura 3 apresenta a área total de parcelamentos irregulares fiscalizados por município para um período mais curto (2009 a 2018), mostrando que os parcelamentos irregulares superam os aprovados e que mais da metade da área fiscalizada (61%) está concentrada em apenas seis municípios, também nos vetores norte e sul.
Portanto, nem mesmo o último boom imobiliário no país, liderado pelo PMCMV e por dinâmicas imobiliárias financeirizadas, conseguiu conter o parcelamento informal da terra. O que parece ter mudado é que o parcelamento informal está fornecendo menos terra para os pobres urbanos e mais oportunidades especulativas para a classe média e atores de elite. O parcelamento informal especulativo tende a seguir espacialmente o parcelamento formal de terra em áreas periurbanas e rurais nos vetores norte e sul, onde há uma crescente demanda por investimentos em loteamentos de segunda residência, chacreamentos e condomínios fechados. Muitos destes loteamentos são de segunda residência, seu crescimento não estando, portanto, diretamente associado a um crescimento demográfico. Este parece ser o caso de Brumadinho, que combina muitos novos parcelamentos (formais e informais) mas com menor crescimento demográfico. Os impactos demográficos do desastre do rompimento da Barragem do Córrego do Feijão, em 2019, podem também estar associados ao menor crescimento deste município. Por outro lado, parcelamentos populares e precários, incapazes de competir com o PMCMV e as ocupações urbanas, continuaram a expandir-se de forma residual, especialmente ao longo do vetor industrial oeste1.
Diante das preliminares dos dados sobre a dinâmica populacional na última década e a conformação do processo de metropolização a partir de variáveis econômicas e de uso e ocupação do solo, é possível apontar três hipóteses. Primeiro, a de que as tendências anunciadas há décadas se confirmaram no que diz respeito aos eixos de estruturação metropolitana, seguindo os vetores norte, oeste e sul da RMBH. Segundo, de que a consolidação dessas tendências permite-nos descrever um movimento socioespacial com tempo e espaço bem definidos e vinculados às políticas urbanas predominantes na última década (programas de moradia, planos de mobilidade e obras viárias, por exemplo), embora contornados por interesses de mercado sob lógicas especulativas e atravessados por ritmos e dimensões pouco previsíveis, como as consequências da pandemia de COVID-19, as novas formas de trabalho e usos algorítmicos do território, além das pautas da agenda urbana no campo da segurança pública e da crise climática, por exemplo.
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Esses processos capilarizaram-se no arranjo territorial metropolitano e podem estar impulsionando a dispersão e a homogeneização de conteúdos específicos da urbanização, dando novo ciclo à periferização, espoliação e segregação. Terceiro, que a releitura de tendências já anunciadas nos permite reconhecer rupturas e continuidades na realização da fase mais recente da urbanização brasileira, que aponta para uma complexidade contemporânea da questão regional e um esforço de caracterizar o movimento socioespacial em seu momento mais abrangente e disperso. Por fim, cabe ressaltar que a dinâmica de descentralização demográfica, desconcentração econômica e dispersão espacial da RMBH parece conformar uma cidade-região mais extensa, mais polinuclear e cujos padrões de segregação se revelam mais complexos do que o denotado pelo modelo centro-periferia. Descentralização sempre relativa e contraditória, dado que a centralidade da capital se mantém e se reconfigura em outros termos, e que a RMBH como um todo parece ampliar sua polarização no território mineiro. A análise dos dados detalhados do Censo 2022 serão cruciais para melhor entendimento destas dinâmicas.
*João Tonucci (Cedeplar/UFMG), Jupira Mendonça (EA/UFMG), Juliana Luquez (EA/UFMG) e João Vitor Rodrigues (EA/UFMG), pesquisadores do Observatório das Metrópoles Núcleo Belo Horizonte
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Thalita Pires