ÁFRICA DO SUL

Dilemas da Humanidade chega ao fim e organizações celebram internacionalismo da luta popular: 'Sementes do socialismo foram plantadas'

Mais de 140 organizações de 70 países estiveram reunidas em Joanesburgo para unificar enfrentamento ao neoliberalismo

Brasil de Fato | Joanesburgo (África do Sul) | |
Soluções para enfrentar crises do capitalismo são reais e foram compartilhadas em Joanesburgo - Rafa Stedile

A Conferência Internacional Dilemas da Humanidade chegou ao fim nesta quarta-feira (18), em Joanesburgo, na África do Sul, e representou um avanço significativo na organização da classe trabalhadora contra as estruturas neoliberais. 

Entre sindicatos, partidos e movimentos populares, o evento organizado pela Assembleia Internacional dos Povos (AIP) reuniu mais de 140 organizações populares de 70 países no Constitution Hill, antiga prisão onde ficou detido o ex-líder do país Nelson Mandela e hoje um símbolo da luta popular contra o regime de segregação racial do apartheid.

"Nos reunimos para poder trocar experiências e acúmulos em cada parte do mundo. Para dizer o que é de fato a construção do socialismo hoje", sintetiza Giovani del Prete, da coordenação da conferência e membro da secretaria da Alba Movimentos.

A terceira edição da Conferência deu continuidade a um ciclo que teve duas edições no Brasil, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST): uma em 2004, no Rio de Janeiro, e outra em 2015, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, interior paulista.

"O capitalismo está em crise porque é um sistema social que cria imensa riqueza e imensa desigualdade. Reduz a capacidade de as pessoas de usufruirem dos frutos do seu trabalho. Ao mesmo tempo, o capitalismo extrai riquezas da natureza sem se preocupar com a destruição que causa no planeta", diz trecho do documento final apresentado pela comissão organizadora no painel de encerramento.

"As sementes do socialismo foram plantadas pelas forças progressistas que se reuniram no nosso processo", pontua outra parte do texto.


As místicas reforçaram a luta contra o imperialismo e a esperança em um futuro socialista / Rafa Stedile

Os quatro pilares para construir o socialismo

Após a realização de 6 painéis, 12 seminários temáticos e diversas outras atividades, incluindo apresentações culturais e lançamentos de livros, os movimentos que formam o processo de construção do Dilemas da Humanidade definiram quatro pilares para a construção do socialismo. 

O primeiro deles é a recomposição da classe trabalhadora. O processo passa por construir forças de “agitação, educação e mobilização nos sindicatos, organizações populares, cooperativas e comunas”.

Outro pilar é o resgate da vida coletiva. Isso envolve não só enfrentar a alienação do capitalismo, mas também as tentativas de “coletividade tóxica produzidas por forças fascistas e fundamentalistas”.

Reconstruir a cultura de luta é outra prioridade estabelecida pela coletividade do Dilemas da Humanidade. Por fim, é fundamental para as organizações estabelecer a solidariedade concreta, princípio essencial para a superação de barreiras como a fome e o analfabetismo. 


Classe trabalhadora traçou caminhos para a construção do socialismo e enfrentar as forças neoliberais / Lindo Motha

“Nós temos muitas tecnologias atuais que deveríamos usar para que a humanidade avance, para construir economias que garantam que a população mundial viva melhor. É claro que chamamos isso de socialismo, é sobre isso que essa conferência trata. É garantir que as pessoas tenham acesso a água potável para beber, educação de qualidade gratuita. As pessoas têm que ter emprego, os jovens têm que ser absorvidos pelo mercado de trabalho”, analisa Irvin Jim, presidente da maior organização de trabalhadores da África do Sul, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos.

“Nós não podemos assistir sentados a crise profunda do capitalismo, que tem sido permanente desde 2008, que é estrutural e continua desencadeando pobreza, desemprego e desigualdade”, completa o sindicalista. 

As cerca de 500 lideranças progressistas, intelectuais e membros de organizações populares reunidos reconheceram que a enorme desigualdade social e a catástrofe ambiental a nível global têm soluções possíveis, mas as forças imperialistas “não estão dispostas a reconhecer o declínio do seu controle”.

“Eles preferem destruir o mundo para manter os seus lucros e autoridade do que salvá-lo para a humanidade”, diz outro trecho do texto final.


Encontro entre João Pedro Stedile, dirigente do MST, e Carmen Navas Reyes, diretora executiva do Instituo Simon Bolívar / Rafa Stedile

Mulheres e jovens

O debate sobre as soluções para essa crise humanitária deu destaque para duas forças fundamentais para a reorganização da classe trabalhadora: as mulheres e a juventude. 

Ana Priscila Alves, representante da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil e participante do painel Organização da Classe Trabalhadora, pontua que os dilemas da humanidade são internacionais, porque o funcionamento do capitalismo é internacional. 

“A exploração do nosso trabalho também é internacional, do trabalho das mulheres não pago ou mal pago, isso também se articula de forma internacional. E pra superar isso é também romper com esse imperialismo, essa dominação capitalista, que também organiza o conjunto do trabalho internacionalmente, não só o trabalho reprodutivo, mas o trabalho produtivo também”, explicou Alves.

Já Carlos Alberto Machado Alves, militante do Levante Popular da Juventude, destacou o intercâmbio com a juventude do maior movimento sul-africano de moradores de favelas, o Abahlali Basejondolo.

Para ele, os problemas relacionados à juventude brasileira, como o extermínio, a falta de estrutura e acesso à educação e ao mercado de trabalho são problemas similares aos sentidos pela juventude sul-africana e de países como o Marrocos.

"É uma experiência muito incrível como um jovem negro do Brasil estar conhecendo a África do Sul. Conhecer a organização popular nesse continente pode contribuir muito para a construção da organização popular no Brasil", pontua Alves. 


O intercâmbio entre a juventude brasileira e a de países africanos em Joanesburgo: caminho para fortalecer e reorganizar a classe trabalhadora mundial / Lindo Motha

Palestina

Intensificar a solidariedade à causa palestina em meio ao massacre imposto por Israel aos palestinos permeou todo o evento. Durante os cinco dias de encontro, a escalada militar sionista avançou sobre a Faixa de Gaza, deixando milhares de mortos e aproximadamente 2 milhões de palestinos sem acesso a água e alimentos. Em meio a este cenário, Free, free, Palestine (Palestina Livre) era o canto entoado por todos os locais do Constitution Hill

“Estar nesse espaço que em algum momento foi repressivo, um espaço em que as pessoas que lutaram contra o apartheid estiveram de uma forma tão repressiva. E pode liberar este espaço, poder falar sobre a solidariedade à Palestina, que é outro espaço que ainda existe uma segregação, onde está acontecendo uma limpeza racial ética. São muitos os paralelos”, pontua a candidata presidencial dos EUA pelo Partido Socialismo e Libertação (PSL), Claudia de la Cruz.

“Quando Mandela estava lutando contra o apartheid, os EUA chamaram Mandela do mesmo que está chamando agora os palestinos: terroristas. Temos que aprender com essa história. Mandela e um movimento internacional tiveram a capacidade de libertar a África do Sul. Este é o chamado que esse espaço nos faz”, completou a socialista estadunidense.


Naledi Pandor: "Espero que a África do Sul possa continuar contribuindo para o movimento internacionalista global". / Rafa Stedile

Na mesma linha, a histórica militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina Leila Khaled avaliou de forma positiva a conferência. “Nós temos palavras que vamos levar conosco, que vamos contar para o nosso povo em Gaza. 

Khaled destacou a importância dessa congregação internacional. "Nós temos que nos unir. E nós convocamos por uma união internacional, porque unidade para um povo sob ocupação é uma arma. Agora estamos trabalhando juntos no território, e mesmo antes disso, quando Gaza foi atacada cinco vezes, durante o ano de 2008. E agora Israel quer falar que eles só estão atacando o Hamas, mas as crianças não são o Hamas. As mulheres não são o Hamas. Eles estão atacando nosso povo. E é um ataque genocida”, pontuou a ex-guerrilheira.


"Nossa oposição ao apartheid deve continuar distribuída no continente, precisamos engajar os países do norte nos direitos da África. Sabemos que nós fomos beneficiados e queremos usar esses benefícios no interesse dos demais. O internacionalismo será importante na cristalização de novas forças políticas significativas, precisamos de uma abordagem estratégica que busca uma ordem mundial inclusiva, justa e democrática", reforçou Naledi Pandor, ministra de Relações Exteriores e Cooperação da África do Sul.

"Nós estamos ansiosos para ver movimentos sociais corajosos e unificados, precisamos nos unir hoje para criar o amanhã que queremos", completou Pandor.


Solidariedade internacional foi um dos pilares para vitória contra o apartheid na África do Sul e, para as organizações populares, é fundamental também para a liberdade da Palestina / Rafa Stedile

Cartas em solidariedade à Palestina, Cuba e Índia

O apoio aos palestinos pelas organizações que constroem a Conferência Internacional Dilemas da Humanidade foi sintetizado em uma carta também apresentada hoje (18), no marco do encerramento do evento.

“No legado daqueles que lutaram e venceram o apartheid na África do Sul, onde estamos reunidos, exigimos o fim do estado de apartheid israelita. Condenamos o bloqueio a Gaza, que já dura 16 anos. O estado de apartheid israelita imposto e o bloqueio são crimes contra a humanidade”, diz trecho do documento.

Além desta carta, outros dois documentos foram redigidos e apresentados no fim do encontro em Joanesburgo.

O primeiro texto destaca a campanha de arrecadação de um milhão de assinaturas para a retirada de Cuba da lista de Estados patrocinadores do terrorismo - posição incluída por decisão do ex-Presidente Donald Trump.

A campanha é organizada pela ALBA Movimientos, a Assembleia Internacional dos Povos, o Foro de São Paulo, a Confederação Sindical das Américas, a Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo, a Marcha Mundial das Mulheres, a Rede Continental  Latinoamericana e Caribenha em Solidariedade a Cuba, e a Vía Campesina.

“Nem o bloqueio econômico, nem qualquer outra medida deste tipo derrotará a soberania e a autodeterminação do povo cubano”, pontua trecho da carta.

O segundo documento é organizado pela Assembleia Internacional dos Povos e condena veementemente as detenções de Prabir Purkayastha e Amit Chakravarty, do portal indiano Newsclick, e a intimidação de mais de 50 jornalistas pela Polícia de Deli, apoiada pelo regime de Narendra Modi.

“Apelamos aos nossos amigos em todo o mundo para que se juntem a nós na exigência da libertação imediata de Prabir e Amit e do fim da intimidação e do assédio de jornalistas e investigadores na Índia”, diz trecho da nota. 




 


 

Edição: Rodrigo Durão Coelho