Lançado neste mês, o livro Agrotóxicos e Colonialismo Químico, da pesquisadora Larissa Mies Bombardi, traz um panorama atualizado de como a população brasileira está sendo afetada pelo uso massivo de pesticidas no país.
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Enquanto a União Europeia tem 269 tipos de agrotóxicos proibidos, em países da América Latina, como Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, os banimentos mal chegam a trinta substâncias.
Entre 2020 e 2021, o Brasil dobrou o uso de agrotóxicos, saindo de 360 mil toneladas para 719 mil. Entre os 10 mais vendido por aqui, cinco são proibidos na União Europeia.
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Tudo isso para dar conta da expansão agropecuária no país. Hoje, apenas a plantação de soja no Brasil equivale ao território da Alemanha, são 358 km². A cultura teve um aumento de mais de 200% nos últimos anos.
Estes dados são alguns presentes no livro e que ajudam a explicar porque Bombardi cunhou a expressão “colonialismo químico”.
“O colonialismo, historicamente, foi a estratégia, digamos assim, de desenvolvimento do capitalismo. [...] Essa violência [colonialismo] se perpetua, ela é o mecanismo pelo qual o Brasil e outros países do mundo se inserem na economia do mundo”, afirmou a pesquisadora em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (16).
Bombardi é professora do Departamento de Geografia da USP. Desde 2021 ela vive fora Brasil após receber uma série de ameaças por telefone e redes sociais por conta das pesquisas que realiza em relação ao agrotóxicos. Na Europa, ela desenvolve pesquisas no Institut de recherche pour le développement (IRD), em Paris, França, sob o Programme national d’accueil en urgence des scientifiques et des artistes en exil (Pause).
A pesquisadora argumenta que o capitalismo se transformou ao longo dos séculos e hoje domina a agricultura, retirando dela sua características milenar de alimentar a população.
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“O capitalismo encontrou formas de se apropriar da renda da terra, por meio da venda da semente, de fertilizantes e por meio da venda dos agrotóxicos”, explica.
Lombardi traz outro conceito para explicar este fenômeno: Monopolização do território, quando “o capital se apropria da renda obtida pela agricultura (a renda da terra) sem participar da produção agrícola", define ela em seu livro. Isso gera uma “agricultura subordinada ao capital industrial (indústria de agroquímicos) e ao capital financeiro (uma vez que esse tipo de agricultura é amplamente financiado pelos bancos)”.
Como soluções para este cenário, Bombardi traça duas prioridades, uma em nível global.
“A primeira coisa é que a gente não tem uma regulação internacional para agrotóxicos”, lembra a pesquisadora. “Se a pulverização aérea é proibida na União Europeia, por todos os males que ela provoca, tem que ser aqui também”.
E se tratando de Brasil, o foco para a especialista é a reforma agrária.
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“Não dá pra ler o tema dos agrotóxicos separado do tema da questão fundiária, da questão agrária brasileira, eles são coisas que vêm juntas”, argumenta.
“A gente quer construir um país com segurança e soberania alimentar, ou a gente quer continuar inserindo nesse universo da economia mundial dessa forma, vendendo produtos de baixíssimo valor agregado?”, finaliza a pesquisadora.
O livro já está disponível à venda no site da editora Elefante.
Leia a entrevista completa abaixo:
O que é colonialismo químico?
Colonialismo químico, de onde vem isso? Bem, o colonialismo, historicamente, foi a estratégia de desenvolvimento do capitalismo.
Os países que hoje a gente considera que são os de economia central da Europa, séculos atrás, passaram a se apropriar de outras porções do planeta, de forma muito violenta, utilizando trabalho escravo para acumular--aquilo que a gente chama de acumulação primitiva-- e gerar o que hoje a gente conhece como capitalismo.
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A nossa formação territorial, digo do Brasil e dos países da América Latina, foi feita por meio do colonialismo. Toda essa forma de apropriação sempre foi muito violenta, por meio do assassinato, do genocídio dos povos originários. O colonialismo é o processo violento pelo qual o capitalismo se consolida como modo de produção.
Então isso é o colonialismo clássico como a gente conhece. E o que a gente está agora falando em colonialismo químico? O que é isso?
Obviamente que a gente não está mais falando desse período histórico, especificamente, não está considerando que o Brasil é colônia.
Estamos em outro momento de mundo, mas essa expressão serve para entender a violência que ainda nos é imposta quando nos inserimos na economia globalizada.
A violência que se perpetua, se modifica e que ganha formas inclusive modernas é a violência química. Ela é o mecanismo pelo qual o Brasil e outros países do mundo se inserem na economia mundial.
Quando a gente vê, por exemplo, a nossa pauta de exportação, a gente vê a importância que os produtos minerais e os produtos agrícolas têm.
E não só a nossa, todos os países do Mercosul entram em bloco nessa economia mundo vendendo minérios e produtos agrícolas basicamente. Entramos de forma subordinada na economia do mundo e essa subordinação obviamente não é só econômica, ela se dá em outros níveis.
Se pensarmos no clássico do colonialismo que é violência física, expulsão dos povos, vemos isso acontecendo hoje com os povos indígenas quando por exemplo nos conflitos fundiários eles são bombardeados com agrotóxicos.
Hoje a União Europeia controla cerca de um terço das vendas dos agrotóxicos, das vendas mundiais. Eles vendem substâncias que não são autorizadas no seu próprio território, para países como o Brasil, e muitas vezes essas substâncias têm sido utilizadas justamente com armas químicas nos conflitos fundiários
Aqui já tem uma assimetria imposta, que se dá também porque um terço dos agrotóxicos usados no Brasil não são autorizados na União Europeia.
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E entre os dez mais vendidos, cinco não são autorizados na União Europeia.
O caso para mim mais emblemático é do glifosato, o herbicida mais vendido no mundo e também mais vendido no Brasil. É uma substância que foi considerada potencialmente cancerígena para seres humanos ainda em 2015 pela Organização Mundial da Saúde.
E pela legislação brasileira, o resíduo dessa substância na água potável é cinco mil vezes maior permissivo do que o resíduo permitido na União Europeia.
Então, é realmente valer menos. É como se a população do resto do planeta valesse menos.
Que outras diferenças podemos traçar entre o colonialismo do século 16 e o químico?
Pensando nas relações coloniais, a novidade digamos assim, da agricultura é que no pós-Segunda Guerra Mundial indústrias começaram a faturar por meio da agricultura sem necessariamente estarem diretamente envolvidas na agricultura.
A agricultura, historicamente, e sempre foi, digamos, um desafio numa produção capitalista. Por quê? Porque a agricultura pressupõe a sazonalidade, os ciclos da natureza.
E o símbolo, digamos assim, do empreendimento capitalista é o controle, a previsão, a padronização, tudo que é muito difícil na agricultura.
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Por isso o capitalismo demorou bastante tempo para avançar na agricultura por todos esses elementos que eu estou comentando, e também porque quando a gente lida com camponeses que estão produzindo alimentos, eles têm outros elementos no próprio universo deles, no universo social, no universo das suas relações interpessoais etc., que permitem que, muitas vezes, eles produzam no limite da sua sobrevivência, porque tem outros valores implicados nesse valor nessa produção agrícola-camponesa.
A autonomia, a liberdade, a conexão com a natureza. Então o capitalismo não avançou, mas encontrou formas de se apropriar da renda da terra. E quais são essas formas? Por exemplo, por meio da venda da semente, de fertilizantes químicos, dos agrotóxicos.
E onde que entra o colonialismo aqui? O colonialismo entra no fato de que essas empresas que tem, no último ano, faturaram mais de $ 60 bilhões (cerca de R$ 300 bi) só com agrotóxicos, elas se apropriam indiretamente do território mundial, especialmente dos países que compõem o Sul particularmente da América Latina, eu destacaria Brasil e Argentina.
É um mecanismo que só é possível com a conivência, não só conivência, com digamos assim, com apoio e com a atuação importante de uma oligarquia rural. Eu vou poder dizer assim, porque quando a gente fala de um país em que 1% dos proprietários controla 50 % das terras, dá tranquilamente para falar em uma oligarquia rural.
A gente repete essa conexão, esse elo entre os interesses que estão sediados na União Europeia com os interesses de uma pequena elite dominante. A gente vê o nosso território à mercê desse jogo que só interessa ao capital industrial, as indústrias indústrias produtoras dessas substâncias, que se organizam de forma oligopolística.
A violência física não diminuiu, porque a gente continua testemunhando os conflitos no campo, os assassinatos de camponeses, de trabalhadores rurais, de indígenas, a gente está vivenciando isso, e agora, além de toda essa violência física que não cessou, a gente também vivencia essa violência química, que atinge, obviamente, de forma difusa toda a população.
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Quando a gente considera, por exemplo, os níveis de resíduo, é possível dizer que a população no Brasil está potencialmente exposta a essas substâncias, mas, claro, que os camponeses, os trabalhadores rurais, os indígenas, quilombolas, eles é quem vão sofrer a carga maior dessa exposição.
Professora, como você explicou, essa relação de colonialismo químico vem causando severos conflitos violentos no campo brasileiro afetando, principalmente, populações originárias. Fora estes grupos, já podemos sentir os efeitos para a população urbana? Ou população do campo que tem contato com esses agrotóxicos, embora não seja vítima de ataques químicos?
Vivemos um desastre que já está em curso, que cabe a nós enquanto sociedade questionar e bloquear esse caminho, porque isso é um caminho sem volta. E eu posso dizer que é um desastre que já está acontecendo.
Vou dar, vou dar dois exemplos muito, muito concretos, um é do trabalho da Ada Pontes, que ela fez um mestrado na Universidade Federal do Ceará (UFC), hoje, ela faz doutorado na Fiocruz do Rio de Janeiro, e ela estudou crianças que desenvolveram puberdade precoce em função da exposição a agrotóxicos.
Puberdade precoce nesse caso não era meninas menstruando antes da hora, como eu imaginei quando li o título do trabalho. Eram bebês, meninas de dois anos, que desenvolveram mamas e pelos pubianos em função dessa exposição.
São exemplos de alteração endócrina, disrupção endócrina.
Um outro exemplo, é o professor Wanderlei Pignati, ele lançou um livro recentemente sobre agrotóxicos em meio ambiente, uma coletânea de vários autores.
Há um conjunto de autoras do Mato Grosso do Sul que mostra casos de mulheres que tiveram abortos sucessivos em função dessa exposição a agrotóxicos.
Uma parte desses agrotóxicos que são utilizados no Brasil tem um impacto muito grande justamente no desenvolvimento do feto e em outras formas de alterações endócrinas.
Por exemplo, quando a gente fala que determinado agrotóxico é um disruptor endócrino, causa alterações endócrinas, o que isso pode significar? Entre outras coisas, eu só vou falar três, pode significar desenvolvimento de diabetes, má formação fetal e infertilidade.
Tem casos de mulheres que têm abortos sucessivos em função da exposição dessas substâncias. Então, por que eu posso dizer que a gente já está diante de um desastre? Porque isso é exatamente a mesma coisa que aconteceu no Vietnam no pós -guerra, quando os Estados Unidos despejaram o agente laranja, que é um precursor de um dos agrotóxicos utilizados hoje.
Então, no Brasil, a gente já tem literatura suficiente mostrando abortos sucessivos, três, no mínimo. É um desastre, a gente já está diante desse desastre. Não é uma morte anunciada, a gente já está lidando com isso.
Diante deste cenário tão complexo que envolve relações comerciais que se sucedem há mais de 500 anos, me parece pouco dizer que a resposta é investir em alimentação orgânica, certo professora?
Eu penso que a gente tem diferentes respostas, inclusive considerando a escala de tempo e a escala espacial.
Em relação à escala global, a primeira coisa é que a gente não tem uma regulação internacional para agrotóxicos.
A gente tem três convenções para as substâncias tóxicas, nenhuma delas aborda diretamente os agrotóxicos, embora eles estejam incluídos.
Até hoje foram banidas 16 substâncias de um universo de 400.
A segunda coisa é que em uma dessas convenções, o que ficou estabelecido? Que se determinado país, por exemplo, o Brasil vai importar uma substância que é proibida no país que está exportando --um país da União Europeia exporta uma substância que é proibida no próprio território-- o Brasil tem que dar sua anuência.
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Então, tem lá uma expressão jurídica PIC, que significa Prior Informancy Consent, quer dizer um consentimento de informação prévia.
Quer dizer, você foi avisado de que essa substância é proibida no nosso país, Isso que está estabelecido nessa convenção. Os países que vão comprar têm que ter ciência daquilo que eles estão comprando.
Os representantes da Comissão Europeia dizem "mas a União Europeia não exporta aquilo que os países não querem comprar".
A gente está lidando com o tema do aquecimento global, então essa é uma emergência mundial e a gente vai ter que lidar com isso, e a agricultura é um tema central para isso.
E, obviamente, quem em nível local, a gente só chegou nesse lugar do Brasil ser um dos maiores consumidores mundiais de agrotóxicos, porque é um país com extrema concentração fundiária, que decidiu converter um território igual, uma área igual ao território da Alemanha em soja.
Então, não dá pra ler o tema dos agrotóxicos separado do tema da questão fundiária, da questão agrária brasileira, eles são coisas que vêm juntas.
É preciso que a gente pense num projeto de nação, que o país a gente quer construir? A gente quer construir um país com segurança e soberania alimentar, ou quer continuar inserindo nesse universo da economia mundial dessa forma, vendendo produtos de baixíssimo valor agregado?
Claro que a longo prazo a gente também tem que questionar esse desenvolvimento econômico desenfreado, mas para esse momento um projeto de nação que tem os pés fincados na segurança e na soberania alimentar abre um caminho enorme para a gente rediscutir como é que a terra é apropriada no Brasil e retomar a função social da terra e pensar no bem comum.
Tudo isso porque a produção agrícola bate ano após ano recordes de safra e não responde à alimentação da população brasileira. A fome dobrou nos últimos sete anos no Brasil.
Inclusive, mesmo em nível mundial a fome aumentou entre 2019 e 2023, mais de 120 milhões de pessoas passaram a também sofrer de fome, além do montante que já havia.
Em escala nacional a gente tem que lidar com isso também, com as nossas raízes, com a nossa formação territorial colonialista, em que uma pequena elite controlou e continua controlando o território da maneira como faz.
Ainda que sejam respostas complexas, o Brasil tem essas repostas na prática, certo? Como é o caso do MST e outros movimento rurais.
Sim, eu acho que o fim para esse desastre é agroecológico e feminista. Eu penso que a gente já tem experiências muito importantes no Brasil e ao redor do mundo sobre a transição agroecológica, sobre trazer o conhecimento ancestral tanto na produção agrícola quanto nos nossos hábitos alimentares.
Obviamente que tem uma solução e essa solução não pode estar baseada na agricultura como uma forma de mecanismo pautado pelo mercado.
A agricultura tem que estar endereçada ao bem comum. Cultura é cultura, somos nós, somos os seres humanos, a maneira como a gente desenvolver os modos de vida, como a gente foi trabalhando com a natureza para fertilizar a terra.
Então, uma agricultura que é devastadora vai na contramão do caminho da alimentação.
Essa agricultura baseada nessa acumulação sempre, baseada na monocultura, que é um mecanismo avesso a maneira como a natureza se organiza, a natureza é biodiversa.
Quando a gente vai na contramão da maneira como a natureza se organiza, obviamente a gente vai ter um desequilíbrio.
Tem toda uma teoria agronômica desse desequilíbrio causado por essa imposição de, por exemplo, de uma fertilização química baseada em três minerais, de uma vasta área com um tipo de cultivo só. Isso é um desastre.
Então, aqui não tem outro caminho, a gente tem que repensar. E é isso que, de alguma forma, os movimentos populares, os movimentos das mulheres têm feito, têm resgatado essas práticas, que são práticas ancestrais.
Professora, se a gente fosse montar uma listinha de recomendações para o presidente Lula, a partir do que a gente estava ouvindo aqui, deveríamos colocar, então, priorizar reforma agrária; consolidar políticas de agroecologia; regularizar territórios indígenas e quilombolas; acabar com esta relação do Brasil importar e usar produtos que são proibidos em outros países… E o que mais? O que mais é possível pleitear para o atual governo?
Olha, já que é uma carta para o presidente Lula, a gente pode pedir a ele que faça do Brasil o país que irá propor às Nações Unidas um outro marco Regulatório Internacional para Agrotóxicos.
O país mais afetado dizer chega, não queremos mais ser isso, não queremos mais ser afetados dessa forma, a gente quer a mesma regra para o mundo todo.
Então se a pulverização aérea é proibida na União Europeia, por todos os males que ela provoca, tem que ser aqui também.
A gente tem a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos. A gente quer isso, é isso que a sociedade precisa. A sociedade não precisa rasgar o princípio de precaução por meio do pacote do veneno, ao contrário, a gente quer o princípio de precaução, a gente não quer estar exposto, é isso que a gente precisa.
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Então acho que o presidente Lula pode, como o país que preside o G20, como o país que está preocupado com o tema da emergência climática, propor uma regulação internacional para agrotóxicos, pode abrir esse caminho e certamente, por meio da reforma agrária e fortalecimento da transição agroecológica, a gente tem uma resposta para isso, para o Brasil não importar feijão, por exemplo.
O Brasil maior exportador mundial de carne bovina, de soja, a gente importa feijão,
A área cultivada com feijão no Brasil diminuiu mais de 50 % nos últimos anos, isso não é possível.
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Edição: Rodrigo Durão Coelho