Plantar, colher e extrair óleos à base de maconha é rotina na casa Cidinha Carvalho, bancária e presidente da Cultive (Associação de Cannabis e Saúde) desde 2016, ano em que ela conseguiu uma autorização judicial para produzir os medicamentos à base da planta e assim tratar a saúde da filha Clarián.
A jovem, hoje com 20 anos, nasceu com Síndrome de Dravet, patologia rara cujos efeitos vão de atraso no desenvolvimento cognitivo à crises epilépticas. “Na primeira vez que ela tomou o óleo, ficou 11 dias sem ter crise nenhuma e aquilo era impossível antes, foi maravilhoso, porque a síndrome não vem sozinha, ela vem com um pacote de sintomas.” diz.
Os processos para a extração do composto são vários e exigem, além de cursos, um ambiente adequado, roupas de proteção e equipamentos específicos. Apesar das dificuldades, essa foi a única possibilidade para Cidinha, já que o Sistema Único de Saúde (SUS) não disponibiliza medicamentos à base da maconha na rede.
Sete anos depois, o cenário vivido pela ativista para acessar os medicamentos à base da planta já poderia ser diferente, isso porque em 31 de janeiro deste ano a Lei 17.618 de 2023, foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ela estabelece que a rede estadual pública de Saúde e a rede privada conveniada ao SUS fornecerão, de forma gratuita, medicamentos com canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) - dois derivados da Cannabis - para pacientes com prescrição médica.
“A gente quer no máximo em dez dias já estar trabalhando e mais curto prazo em duas, três reuniões fechar e soltar a regulamentação”, disse o governador à imprensa no evento de sanção da lei em janeiro deste ano.
Mas, diferente do anunciado por Tarcísio, a medida que deveria ser colocada em prática em até 90 dias não conta ainda com a publicação de um decreto para regulamentar a implementação. O primeiro Plano de Trabalho para a construção do decreto foi obtido pela reportagem, e mostra que a compra de medicamentos deveria ter sido iniciada entre junho e agosto deste ano.
Autor do projeto que originou a lei, Caio França, deputado estadual pelo PSB, critica a morosidade. “Há um atraso, a gente tem sido bastante insistente na cobrança, para que ele [o decreto] possa ser publicado porque nosso lema é: ‘a vida não espera’, tem pessoas que precisam do medicamento, tem muitas pessoas procurando.” França e Cidinha Carvalho são integrantes do grupo de trabalho encarregado de discutir o funcionamento da lei. A comissão é composta por mais de 30 entidades, formada por técnicos, médicos, associações de pesquisa e representantes de pacientes e familiares.
O decreto, segundo ele, deverá incluir apenas três patologias: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa. Enquanto que condições clínicas que provocam dores crônicas serão incluídas numa segunda fase da regulamentação. “A gente sabe muito bem que a primeira fase com essas três síndromes praticamente bem raras envolve um grupo menor de pessoas que serão atendidas, também por isso a gente tem insistido muito na publicação do decreto.”
O grupo se reúne desde fevereiro deste ano e assim como França, Cidinha avalia a necessidade da inclusão de mais doenças e condições clínicas. “É uma regulamentação muito tímida, muito diante do que a gente precisa, essa regulamentação é excludente”, diz.
Segundo ela, a regulamentação inicial da lei exclui diversos pacientes, já que será destinada somente para três patologias, contrariando entendimento da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que permite a importação de medicamentos à base de maconha para qualquer doença bastando apenas a prescrição médica. “Nós estamos num governo super conservador e negacionista, não aceitam nem as autorizações e o entendimento da própria Anvisa, que já autoriza a importação para várias patologias”, diz.
“Não dá para aceitar uma regulamentação sem o autismo, sem epilepsia refratária, sem esclerose múltipla, sem dor crônica. Não concordo que crianças com menos de dois anos não tenham acesso. O acesso tem que ser livre e como primeira opção”, complementa.
A capacitação dos profissionais do SUS para a prescrição dos medicamentos à base da maconha e o acompanhamento dos pacientes também é um ponto de apreensão destacado pelas ativistas. Tal processo segundo Caio França não teve início. “A gente quer aproveitar até para poder fazer uma cobrança respeitosa, mas enérgica para que a gente possa pensar também em soluções sobre o grupo de servidores da secretaria, diretos e indiretos em relação a essa temática. Nós temos aqui as universidades, que já abordam esse tema e que poderiam muito bem nos auxiliar nesse momento.”
“A vida não espera”, ressalta Angela Maria Angela Aboin Gomes, integrante da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (FACT). “Todo dia tem gente morrendo, sofrendo, piorando das suas condições de saúde por falta de acesso a uma medicina realmente eficaz”, diz. Ela classifica como um “absurdo” a espera pela aplicação da lei. “É meio absurdo você falar que as pessoas têm que esperar mais por uma construção de poder público. É um desafio muito grande, mas é um desafio que tem que ser rápido.”
Em 2015, quando a Anvisa autorizou a importação de medicamentos à base de maconha as permissões para a compra desses fitoterápicos giravam em torno de 850 no Brasil. Só entre janeiro e junho de 2023, foram mais de 66 mil permissões, segundo dados da própria Anvisa. Apesar do crescimento, a importação desses medicamentos ainda é cara, o que dificulta o acesso. O valor médio de um pequeno frasco de óleo importado individualmente é de aproximadamente R$ 480, conforme mostram dados da Kaya Mind, empresa especializada em inteligência de mercado para o setor da maconha.
Preocupada com os rumos da lei, Maria Ângela critica a ausência de regulação legal sobre o cultivo doméstico da maconha. “Nós não temos visto projetos de lei que realmente atendam a questão do cultivo doméstico, a gente vê para o cultivo industrial, para o cultivo farmacêutico, mas produtivo familiar e associativista [modelo de colaboração entre empresas que têm interesses em comum] não têm”.
A falta deste tipo de regulação é motivo de preocupação para famílias de pacientes, que segundo ela, “estão desenvolvendo uma ciência e que acreditam que o melhor caminho é esse, ter acesso rápido e amplo à medicina da cannabis.”
Ela explica que o autocultivo e a produção doméstica dos óleos quando aliada à cursos e capacitações permite a produção de uma composição individualizada para cada paciente. “É o tratamento integral individualizado, é muito importante quando a gente fala de teste genético de canabinoides para que a pessoa possa encontrar uma planta ideal, uma medicina viva, de farmácia viva, mais saudável é muito importante”, diz ela que também possui autorização para o cultivo doméstico.
Já Cidinha também defende a medida. “A minha primeira opção foi pensar em cultivar, porque o autocultivo é uma forma de acesso democrático”, diz. “O que a gente quer é que se tenha o cultivo nacional e o autocultivo, que cada um possa ter o direito de cultivar o seu remédio no quintal de casa.”
Judicializações e situação em outros estados
Além do estado de São Paulo, outros 13 estados já possuem alguma regulamentação relacionada à distribuição maconha medicinal pelo SUS, enquanto outros 11 têm projetos em tramitação. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, Acre, Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, São Paulo e Tocantins já possuem leis aprovadas.
Na visão de Caio França, a limitação do decreto que regulamentará a lei da cannabis no SUS em SP deve gerar uma enxurrada de casos de judicialização. “Casos que já poderíamos ter avançado como por exemplo, dor crônica, epilepsias, autismo, eu penso que deverão buscar o acesso na justiça e a regulamentação vai tratar de se atualizar a cada momento para essas patologias.”
Já o Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Sergipe tem projetos de lei sobre o tema ainda tramitando.
Paciente de óleos à base de maconha medicinal desde 2018, o engenheiro e fundador da Associação de Apoio ao Direito à Saúde Natural (Apoiar) Hélio Henrique Júnior, que mora em Santa Catarina, teve de interromper o tratamento contra a ansiedade. Ele relata que as dificuldades começam no acesso à prescrição médica, por exemplo, já que são poucos os profissionais com abertura aos tratamentos à base da planta e vão até os altos custos dos medicamentos. “Além do acesso às prescrições, a gente passa dificuldades de ter acesso ao tratamento, tanto do óleo quanto dos outros produtos. Tanto no meu caso, quanto no do meu pai a gente teria um custo de mais de R$ 30 mil anualmente, então fica inviável realizar esse tratamento.”
Diante desse cenário, ele destaca a importância da regulamentação do acesso e uso da cannabis medicinal no Brasil para a segurança dos pacientes. “Isso traz uma insegurança muito grande para todos os pacientes que precisam fazer o uso, a gente se sente muitas vezes ameaçado de levar os medicamentos conosco, como dentro do carro para quando a gente faz alguma viagem, de ser abordado pela polícia, por exemplo. Milhões de pessoas do Brasil inteiro, precisam desse tratamento e é muito complicado de se obter. Falta regulamentação, falta acessibilidade para todos os pacientes.”
O que diz o estado de São Paulo
A reportagem questionou a Secretaria estadual de Saúde de São Paulo sobre a previsão de publicação do decreto e sobre como a lei será colocada em prática. Em resposta, a pasta afirmou que o decreto foi tecnicamente finalizado e está em avaliação jurídica pela pasta e a Casa Civil. E que os grupos de estudo seguem avaliando a possibilidade de ampliação da disponibilização da medicação para outras patologias, além das já definidas: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose Tuberosa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho