Após a grave escalada da crise no Oriente Médio, iniciada no último 7 de outubro com o ataque do Hamas em Israel, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, declarou que o conflito ilustra o fracasso da política dos Estados Unidos na região. De acordo com ele, Washington "sempre ignorou os interesses fundamentais do povo palestino".
A posição de Moscou coloca em perspectiva os impactos do conflito para a política internacional em um cenário em que o amplo apoio do Ocidente a Israel silencia a guerra que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu promove contra o povo palestino.
O ataque sem precedentes do grupo Hamas, que causou a morte de mais 1.300 pessoas em Israel somente nos primeiros quatro dias de conflito, resultou em uma dura retaliação por parte do país governado por Netanyahu, que determinou um “cerco total” em Gaza, causando uma grave crise humanitária na região.
De acordo com os dados ONU, divulgados na última quinta-feira (12), mais de 1.400 pessoas morreram em Gaza por conta dos ataques israelenses. No plano internacional, a crise no Oriente Médio recebe tratamento assimétrico e uma solidariedade seletiva.
Na última terça-feira, dia 10, o presidente Joe Biden afirmou que os EUA estão do lado de Israel e garantiu assistência militar ao país. De acordo o mandatário norte americano, o apoio de Washington a Israel “é sólido e inabalável”: “Faremos tudo para que Israel possa se defender”. Ao condenar os ataques do grupo Hamas, Biden omitiu as mortes de palestinos em Gaza.
Por outro lado, a Rússia adota uma política neutra e mais ambígua. Em primeiro lugar, diferentemente dos EUA e da União Europeia (UE), a Rússia – assim como o Brasil – não classifica o grupo Hamas como uma organização terrorista. Ao mesmo tempo, Moscou historicamente tem boas relações com Israel e reivindica a manutenção dos contatos com ambos os lados do conflito. Isto foi ilustrado pela fala do porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov. De acordo com ele, a Rússia tem laços históricos com a Palestina e Israel, mantém relações com ambos os países e “participa em todos os formatos de contatos com os palestinos, durante os quais busca encontrar um terreno comum para a resolução do conflito”.
Ao mesmo tempo, as históricas boas relações com Israel, que tem uma grande diáspora russa em seu território, não eximem Moscou de defender a criação de um Estado da Palestina como uma premissa para a resolução do conflito no Oriente Médio. Ao se manifestar sobre a crise no Oriente Médio, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que posição da Rússia não foi adotada hoje "em conexão com estes trágicos acontecimentos, ela se desenvolveu ao longo de décadas". Segundo ele, a decisão de criar o Estado de Israel foi acompanhada da ideia criar um Estado para a Palestina, mas esse acordo nunca se concretizou.
"Bem, Israel foi criado, como se sabe, mas a Palestina como Estado, independente, soberano, nunca foi criada, não ocorreu. […] Além disso, parte das terras que os palestinos sempre consideraram primordialmente palestinas são ocupadas por Israel – em momentos diferentes e de maneiras diferentes, mas principalmente, é claro, com a ajuda da força militar", afirmou o presidente russo.
Neste contexto, a política externa russa antagoniza o trato que o Ocidente dá aos acontecimentos no Oriente Médio, denunciando o fato de que os EUA, em nome da aliança a Israel, ignoram as reivindicações da soberania palestina.
“[Os EUA] pressionaram ambos os lados. Justamente sobre ambos, ora sobre um, ora sobre o outro, mas sempre sem levar em conta os interesses fundamentais do povo palestino. Refiro-me, em primeiro lugar, à necessidade de implementar as decisões do Conselho de Segurança da ONU sobre a criação de um Estado Palestino soberano e independente”, disse Putin durante reunião com o primeiro-ministro do Iraque, Mohammed Shia al-Sudani, em Moscou.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista do Conselho Russo de Assuntos Internacionais (RIAC) para o Oriente Médio, Kirill Semenov, destacou que Moscou mantém um “equilíbrio sutil” em sua abordagem sobre o conflito no Oriente Médio.
De acordo com ele, “a Rússia sempre manteve boas relações com Israel, apesar do fato de que Israel se oriente cada vez mais na direção do Ocidente e no apoio à Ucrânia”. Semenov destaca, ao mesmo tempo, que Israel não adotou as sanções contra a Rússia e não fornece armamento letal à Ucrânia. “Isso tem um motivo, há a preocupação de que a resposta da Rússia seja de apoiar militarmente o Irã ou o Hezbollah, no Líbano”, acrescenta.
Por outro lado, o Hamas é um grupo que sempre se colocou como apoiador da Rússia, adotando uma posição pró-Rússia nos conflitos no Cáucaso e na Chechênia, por exemplo. Da mesma forma, o Hamas apoiou a intervenção militar russa na Ucrânia.
“Para a Rússia é importante manter esse equilíbrio junto aos palestinos e a Israel e, ao mesmo tempo, promover iniciativas de paz. E é preciso que haja um Estado da Palestina. Nesse sentido, podemos ver que a posição da Rússia diverge da do Ocidente”, afirma.
O analista aponta que a política do Kremlin soa mais favorável à Palestina atualmente, mas que essa abordagem é ancorada por resoluções da ONU. “A Rússia insiste na formação de um Estado palestino. Isso pode ser encarado com uma posição pró-Palestina, mas isso está previsto em todas as resoluções do Conselho de Segurança da ONU”, completa Kirill Semenov.
Impacto na guerra da Ucrânia
O agravamento da crise no Oriente Médio também ilustrou de forma clara os alinhamentos geopolíticos que moldam o cenário internacional atualmente. A escalada do conflito entre Israel e Palestina gerou desconforto no presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que disse que "a atenção internacional corre o risco de se desviar da Ucrânia, e isso terá consequências".
O presidente ucraniano também fez uma defesa irrestrita de Israel e não se solidarizou com as vítimas do lado palestino. Ao mesmo tempo, sem apresentar quaisquer evidências, Zelensky acusou a Rússia de apoiar os ataques realizados pelo Hamas contra Israel. A Casa Branca afirmou que a ajuda a Israel não deve prejudicar o apoio financeiro à Ucrânia. No entanto, o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, deu sinais na última quinta-feira, de que a ajuda a Kiev não é indefinida e, segundo suas palavras, está “chegando ao fim da linha”.
De acordo com o jornalista especializado em Oriente Médio, Ruslan Suleimanov, oficialmente, a Rússia ocupa uma posição equidistante no conflito, assumida há muito tempo. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele aponta que “Moscou não ocupa claramente nenhum lado no conflito entre Palestina e Israel, nem no conflito entre as diferentes fracções da Palestina”. “Como se sabe, o movimento palestino é dividido em duas partes: o moderado Fatah e o radical Hamas. Moscou buscou exercer um papel de mediador, mas sem sucesso”, observa.
No entanto, nuances ligadas à crise na Ucrânia alteraram a balança das relações entre a Rússia e as partes do conflito israelo-palestino. A retórica russa de que a guerra na Ucrânia visa combater o "neonazismo" supostamente presente no governo ucraniano levou o chanceler Serguei Lavrov a fazer uma declaração que prejudicou as relações com Israel. O ministro russo chegou a afirmar que o líder nazista Adolf Hitler "tinha sangue judeu". A fala foi em um contexto de justificar a acusação da presença nazista na Ucrânia, apesar do fato de que o presidente Volodymyr Zelensky é judeu.
"O fato não nega os elementos nazistas na Ucrânia. Acredito que Hitler também tinha sangue judeu", acrescentando que "alguns dos piores antissemitas são judeus", disse Lavrov em maio de 2022.
A declaração estarreceu a diplomacia israelense, que convocou o embaixador da Rússia para "esclarecimentos" e exigiu um pedido de desculpas. O atrito na relação com Israel foi acompanhado de uma defesa da intervenção russa na Ucrânia por parte do grupo Hamas.
Para o jornalista Ruslan Suleimanov, a escalada da crise no Oriente Médio é politicamente vantajosa para a Rússia mas, segundo ele, este cenário possui um prazo limitado.
“Para a Rússia é uma situação muito vantajosa, porque isso distrai a comunidade internacional do que acontece na Ucrânia, o que o exército russo faz lá, sobretudo com mortes de civis. Tudo isso vem a calhar para o Kremlin. Mas eu acho que isso tem validade de tempo, porque acho que cedo ou tarde a escalada entre Israel e Palestina vai terminar. A última grande escalada foi em maio de 2021 e durou 11 dias. Eu acredito que agora será mais ou menos o mesmo período de tempo. Por isso a Ucrânia não vai sair da agenda”, completa.
Edição: Patrícia de Matos