Quanto mais famílias são dilaceradas, maior é o investimento do estado em armamento
A menina Ágatha Vitória Félix, de oito anos, morreu após levar um tiro nas costas, disparado pela Polícia Militar, no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro. Era setembro de 2019. Quatro anos depois, no mesmo mês, a pequena Heloísa dos Santos Silva, de três anos, foi atingida por disparos vindos desta vez, de agente da Polícia Rodoviária Federal, quando viajava de carro com a família, no Arco Metropolitano, na Baixada Fluminense.
Entre as mortes das duas meninas que não tiveram a chance de sequer ver a primavera chegar, mães, pais, amigos e vizinhos desolados protestaram nas ruas, criou-se uma lei estadual que dá prioridade às investigações de crimes que envolvam crianças e adolescentes. A Lei Ághata é um esforço além do que já consta na própria Constituição Federal, pormenorizada no Estatuto da Criança e do Adolescente, devidamente regulamentado em 1990.
O que se tem, no entanto, é o aumento no número de vidas interrompidas por balas que ninguém quer assumir ter disparado.
A não proteção devida às crianças e adolescentes é um problema que nos acompanha há mais tempo do que mostram os relatórios recentes. Os dados, por sua vez, reforçam que a distribuição dos direitos humanos é desigual em nosso estado, que concentra nos territórios pobres e nas favelas o maior número de vítimas de homicídios decorrentes de ação policial. Coincidentemente, regiões onde nenhuma política pública chega sem atravessadores.
Se considerarmos os dados divulgados em 2021 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sobre a realidade ampliada para o país, o cenário é catastrófico, só não vê quem não quer enxergar o que os números denunciam sem qualquer cerimônia. Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil, o que nos dá uma média de média de sete mil por ano.
No Rio, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado, somente em 2023, 18 crianças foram baleadas na região metropolitana do estado. Sete morreram, e seguimos contando.
A dor, dizem as mães, os pais, os irmãos em busca de amparo e justiça, não cessa. Mas o estado insiste em ignorar as demandas. E quanto mais famílias são dilaceradas, maior é o investimento do estado em armamento, o que estimula o comportamento bélico dos policiais e os deixa fora de controle. Faltam fiscalização e responsabilidade no uso das armas, mas esse é um tema a ser tratado em outra ocasião.
O que precisamos todos é assumir que as garantias constitucionais são para todos - ou deveriam ser aplicadas para esse fim. O governo precisa fazer, mas nós precisamos cobrar e dizer para onde queremos caminhar, que é para um estado democrático efetivamente de direito. Cláudio Castro não pode deixar a responsabilidade com quem pariu ou quem cria, como se nada tivesse a ver com o assunto, porque tem.
É do Instituto de Segurança Pública (ISP), por exemplo, que saem os dados anuais sobre homicídios de crianças e adolescentes em solo fluminense. Esses dados, por sua vez, precisam chegar mais cedo, de modo que permita a elaboração de um diagnóstico capaz de nortear a construção coletiva de políticas públicas eficazes. E que sejam fornecidos não apenas números, mas as circunstâncias e o contexto estrutural em que esses crimes ocorrem, o que pode confirmar o viés racial a nos atravessar cotidianamente.
O desafio é crescente, mas, sim, é possível prevenir novas mortes violentas. Para isso, é preciso que as instituições que se preocupam e se ocupam com o tema estejam unidas para que as leis já disponíveis sejam cumpridas.
É preciso que a população concorde que a Lei Ágatha precisa sair do papel como estratégia de prevenção. E o Rio de Janeiro precisa abraçar todos os seus cidadãos, independentemente da cor da sua pele ou do quão crespo é o seu cabelo. Independentemente do endereço.
Precisamos acabar com esses engasgos nas nossas gargantas para que essas dores sem justificativa cessem.
*Dani Monteiro é deputada estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) no Rio de Janeiro
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Jaqueline Deister