Em 11 de agosto de 2023 o governo federal brasileiro anunciou um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujas versões anteriores foram um marco dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 2000. O PAC foi originalmente concebido com a proposta de induzir crescimento econômico a partir de diferentes frentes, em especial na área de infraestrutura e facilitação de crédito, seus objetivos sempre estiveram voltados para a criação de empregos e os projetos financiados, em conjunto, visavam a melhoria da qualidade de vida da população.
Esses aspectos foram mais uma vez destacados no anúncio do novo PAC. Nessa versão do programa, uma mudança significativa foi a inclusão do setor de Defesa como destinatário de uma parte considerável dos recursos disponíveis. No entanto, essa decisão não está isenta de controvérsias devido à incerteza em relação à sua contribuição efetiva para os objetivos do programa.
Dentre os nove eixos anunciados, o setor de Defesa ocupa a quarta maior parcela desse orçamento. Foram alocados cerca de R$ 53 bilhões para “modernizar e equipar as forças armadas”, um montante que ultrapassa o destinado à Saúde (R$ 30,5 bilhões) e à Educação (R$ 45 bilhões). Esse fato tem gerado preocupações entre analistas da área, como enfatizado na nota assinada pela Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).
Pela primeira vez o PAC tem uma de suas frentes voltada à Defesa, atendendo especialmente às Forças Armadas e à indústria de defesa nacional. Algo que pode explicar essa presença em um programa com as propostas do PAC, é a ideia de que tal emprego trará retornos em termos de crescimento econômico. A lógica do investimento na indústria de defesa como gerador de desenvolvimento nacional não é uma novidade. Historicamente, a proposta é referenciada como keynesianismo bélico, o qual perpassa necessariamente a formação de um complexo militar industrial, e que pressupõe uma dinâmica em que o gasto militar gera ganhos para a economia de maneira mais ampla.
Exemplos comuns de benefícios esperados são acordos de transferência tecnológica, construção de infraestrutura industrial de ponta, envolvimento de empresas e institutos de ciência e tecnologia (ICTs), geração de mão de obra qualificada, dinamização da cadeia produtiva nacional e fortalecimento da capacidade produtiva nacional. Tais ganhos são pilares da justificativa para os investimentos em defesa, sem deixar de mencionar a superação de dependência tecnológica-econômica e a consequente capacidade de exercício da soberania, ao passo em que se corrigem defasagens críticas do aparato bélico frente ao atual cenário de defesa.
Essa decisão do governo Lula não pode ser recebida com grande surpresa. Não se deve deixar de mencionar o que foram os governos do PT para a indústria de defesa brasileira. O período de 2003 a 2016 contou com importantes esforços de modernização. Grandes projetos estratégicos das Forças Armadas concebidos em meados da década de 1990, saíram do papel sob o governo Lula, como o Projeto Gripen da Força Aérea, o projeto dos blindados Guarani do Exército e o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) da Marinha. Mas não foram apenas esses projetos que demarcaram as iniciativas de modernização da indústria de defesa brasileira.
Marcos institucionais como a renovação da proposta da Política Nacional de Defesa (PND), que estabelece os principais objetivos e marcos conceituais para o planejamento da defesa nacional, a articulação do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED), com a ideia de otimizar a coordenação de esforços de modernização das Forças e de fortalecimento dessa base industrial, a Lei de fomento à Base Industrial de Defesa (Lei nº 12.598/2012) que instituiu regimes especiais de tributação e incentivos fiscais, a Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID) e em especial a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa (END), classificada pela Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) como “um dos momentos mais importantes” da indústria de defesa nacional, concedendo uma “nova perspectiva ao setor e definindo as políticas e orçamentos de médio e longo prazos, consolidando, assim, uma política nacional de valorização da indústria de defesa e que vislumbra, em última instância, a soberania nacional”.
Em boa medida, isso significa dizer que, colocadas as demandas militares, imperativas e urgentes pois são de matéria de segurança nacional, na formulação de políticas econômicas e tecnológicas, os principais entraves para que o Brasil tenha forças de segurança de ponta, atuais e responsivas à ameaças contemporâneas e futuras, sejam superados. Sob essa perspectiva, esse processo ocorre, inevitavelmente, de maneira a induzir desenvolvimento econômico para o país, traduzindo-se em uma situação generalizada de ganha-ganha.
Essa dinâmica não se impõe automaticamente nem mesmo em países desenvolvidos, cujos sistemas nacionais de inovação foram construídos sob demanda militar durante a Guerra Fria, vide o exemplo da tentativa de keynesianismo bélico durante o governo Reagan nos EUA, que não resultou no mesmo sucesso econômico de décadas anteriores. Isso porque há outros elementos macroeconômicos para além do mero gasto militar que determinam os resultados. Assim, embora a formação do complexo militar industrial tenha sido uma experiência de sucesso no imediato pós-Segunda Guerra, sua dinâmica encontra limitações históricas e regionais, que não são adereçadas na proposição do complexo brasileiro pautada pelo setor político.
Para que um complexo militar tenha sucesso em gerar ganhos para a economia civil, é preciso que se estabeleçam mecanismos institucionais e políticas públicas ativas que garantam o aproveitamento das externalidades que tal complexo pode gerar. A estratégia de endogeneização tecnológica por meio da indústria de defesa demanda uma abordagem proativa do governo, por meio de políticas industriais que estabeleçam diretrizes, instituições e mecanismos para promover o avanço desse setor.
Espelhar padrões produtivos não garante que entraves para economias dependentes sejam suplantados, em especial quando se trata do setor de defesa, uma indústria intensiva em capital cujo impacto para a macroeconomia nacional não tem capacidade de transformar, por si só, características estruturais do subdesenvolvimento. Pode, ainda, reverberar em efeitos contrários ao que pretende um programa econômico voltado para a melhoria das condições de vida e redução de distorções socioeconômicas.
A mimetização de padrões produtivos e de consumo estrangeiros implica na capacidade econômica para sustentá-los, a depender de capacidades produtivas ociosas e recursos disponíveis. Assim, quando os esforços produtivos não estão alinhados às reais demandas sociais e ao atendimento às necessidades básicas da população, resulta disso um desequilíbrio entre a priorização do governo e os interesses sociais.
O que não significa dizer das possibilidades de desenvolvimento tecnológico autônomo via indústria de defesa, tendo em vista que esta opera sempre nas fronteiras do conhecimento tecnocientífico, e demandas militares foram preponderantes na geração das principais tecnologias utilizadas atualmente no cotidiano civil. Menos ainda significa dizer que um país não deve buscar superar sua condição periférica.
Devido à relação crítica entre o desenvolvimento tecnológico e condições de dependência, dir-se-ia que o Estado tem a autoridade e o dever de impulsionar a indústria tecnológica. Muitas tecnologias digitais têm aplicações tanto civis quanto militares. Assim, a prevalência dessas chamadas tecnologias duais enfatiza sua importância, pois a capacidade de as produzir afeta a economia e a segurança nacional de um país.
Uma vez que o acesso a diversas dessas tecnologias é restrito por seus detentores (os países desenvolvidos), fica mais explícito o papel fundamental do Estado no investimento em pesquisa, no incentivo a inovação e na busca por parcerias para reduzir a dependência tecnológica, garantindo o desenvolvimento econômico e a soberania nacional.
Não se trata de questionar esses pontos. O objetivo aqui é salientar que a redução de dependência tecnológica, em especial movida por demandas militares, implica em um debate mais amplo sobre um projeto sociopolítico. Ademais, em um cenário em que expectativas de mercado constrangem o investimento público, o conflito distributivo orçamentário deve ser foco de atenção do governo federal. O Ministério da Defesa é uma das principais fatias do orçamento da União, mas cerca de 80% do montante é voltado ao pagamento de encargos sociais (salários, pensões, etc) – segundo dados do SIGA Brasil. É passível de questionamento a razão pela qual investimentos em modernização devem advir de um programa como o PAC – cujos objetivos não dizem respeito ao setor militar.
A questão central aqui abordada é se esses investimentos no setor de Defesa realmente contribuirão para alcançar os objetivos do PAC, que geralmente envolvem o crescimento econômico, a redução da desigualdade, a melhoria da infraestrutura básica, a educação e a saúde pública. A utilidade desses gastos em termos de retorno econômico e social pode ser questionada, especialmente se não houver uma justificativa nítida de como os investimentos no setor de Defesa se alinham com os objetivos gerais do programa e uma proposta ativa de como serão atingidos esses fins. Caso contrário, as externalidades do complexo militar não são apenas indiretas, como também apenas potenciais, repousando mais em pressupostos do que em mecanismos institucionais e sistemas de aprendizado na estrutura industrial.
Tais investimentos já se manifestam no aumento do orçamento destinado ao Ministério da Defesa, mas não de maneira significativa. O Projeto da Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 enviado ao Congresso pela presidência, prevê um aumento ao ministério de aproximadamente R$ 5 bilhões em comparação com o PLOA do ano anterior, passando de R$ 121 bi para R$ 126 bi. No que se refere aos projetos contemplados pelo PAC, o aumento foi de apenas R$ 368 milhões.
Tabela 1: Projetos das Forças Armadas contemplados pelo novo PAC
Na proposta para 2024, as despesas com todos os investimentos são de R$ 8 bilhões, contra os R$ 7 bi proposto no PLOA de 2023, enquanto os gastos com pessoal e encargos sociais passariam de R$ 94 bilhões para R$ 98 bilhões em 2024. O projeto ainda será votado pelo Congresso e os valores podem passar por alterações.
Iniciativas vistas durante os governos do PT e essa nova leva de investimentos via PAC, que correlaciona diretamente demandas militares como eixo central de difusão tecnológica, são determinantes para que as Forças Armadas brasileiras e a indústria de defesa do país possam integrar seus próprios objetivos e interesses em diretrizes políticas nacionais mais gerais, voltadas a iniciativas de ordem econômica.
Equilibrar agendas de segurança com os interesses sociais é um desafio para qualquer governo democrático. A própria nota assinada pela ABED aponta que o governo de transição não criou um grupo de trabalho para lidar com as questões de Defesa. Questões de segurança nacional não são de acesso público, essa falta de transparência pode vulnerabilizar direitos cívicos e sociais, o que torna a questão de interesse público. A demanda por novos equipamentos e tecnologias não se justifica em si mesma; isto é, finalidades e diretrizes para seu uso devem ser pautados, em especial se tais demandas estão sendo colocadas em agendas econômicas que pretendem a prosperidade de uma nação.
* Marianna Braghini Deus Deu é mestra em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp e doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (Unicamp/Unesp/PUC-SP). Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.