Coluna

O Horto fica! O Judiciário e a regularização fundiária da comunidade bicentenária do Rio de Janeiro

Imagem de perfil do Colunistaesd
Moradores protestam, em novembro de 2016, contra reintegração de posse na comunidade do Horto, no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Espera-se uma decisão que respeite a convivência bicentenária da comunidade com o Jardim Botânico

Por Julio José Araujo Junior*
Fernanda Maria da Costa Vieira**
Francisco Trope da Silva Porto***
Mariana Trotta Dallalana Quintans****

Durante a pandemia de covid-19, milhares de famílias foram ameaçadas ou sofreram remoções forçadas. Diante desse cenário, a mobilização da Campanha Despejo Zero na ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) foi muito importante para que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinasse a suspensão de despejos de áreas ocupadas por quatro vezes. Na quinta oportunidade, em 31 de outubro de 2022, o Supremo condicionou a retomada dos processos de remoção à criação pelos tribunais do país de comissões de conflitos fundiários e a realização de audiências de mediação e visitas às áreas de conflito.

:: Desafio das políticas de moradia passa por combate ao neoliberalismo, avalia urbanista ::

Em junho deste ano, para implementar a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 510 para regulamentar a criação de comissões nos tribunais. No caso do Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça deixou de implementar a sua comissão, mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) seguiu à risca os termos da resolução.

E mais: o TRF-2 não só criou a Comissão de Solução Fundiária (CSF), como também já a regulamentou e deu início aos trabalhos. O funcionamento da comissão pressupõe dois momentos: o primeiro corresponde à análise de admissibilidade do caso. Nessa etapa, há uma certa formalidade na deliberação, que se assemelha a uma sessão de julgamento do tribunal, mas, nesse caso, é mais importante porque garantirá que, a partir desse aceite da Comissão, um outro tipo de tratamento, mais dialógico e atento à complexidade de atores e questões envolvidas, será adotado.

O segundo momento de atuação da comissão consiste na articulação com os entes envolvidos e com a sociedade civil para pensar uma solução singular para cada caso. Nessa etapa, o que se objetiva não é necessariamente cumprir uma decisão de reintegração, mas sim alcançar a melhor forma de atendimento do interesse público. Ao colocar os interesses e direitos fundamentais em pé de igualdade e oferecer sensibilidade nas tratativas com os diversos entes responsáveis pelas políticas públicas, o tribunal dá um grande passo na construção de soluções justas e fundamentadas, nos termos do artigo 8º da Resolução 510/2023 do CNJ. Isso traz grande esperança para a efetivação do direito à terra e à moradia.

:: Seminário em Porto Alegre discute nova ferramenta de regularização fundiária: o termo territorial coletivo ::

Comunidade do Horto

A Comissão do TRF-2 já admitiu casos relativos a conflitos fundiários urbanos, rurais e quilombolas. Um caso emblemático é o da Comunidade do Horto, comunidade tradicional da zona sul da cidade com origens no início do século 19. O território é histórico e fundamental para a reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade. Até a admissão do caso na comissão do TRF-2, a realidade da comunidade era apreciada em ações individuais possessórias movidas pelo Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico, com argumentos baseados unicamente na titularidade pública da área e na defesa genérica do meio ambiente.

Com a entrada do caso na comissão, espera-se que as condições para uma decisão que respeite a convivência bicentenária da comunidade com o Jardim Botânico, de forma sustentável, sejam finalmente estabelecidas. O esforço da comissão vem a corroborar o entendimento de vários órgãos, que apostam na conciliação e na permanência da comunidade, com o estabelecimento de regras de convivência com o Jardim Botânico e diretrizes socioambientais para o futuro.

Relembre: Reintegração de posse na comunidade do Horto, no Rio, tem confronto entre PM e moradores

A expectativa é que, de fato, a Comissão contribua na resolução desse conflito que já perdura há mais de 40 anos, propiciando o diálogo entre os órgãos públicos e a comunidade para que ocorra a tão esperada regularização fundiária com a permanência das famílias no território, assegurando o direito à moradia adequada e a preservação ambiental para a atual e para as futuras gerações de moradores do Horto. A frase “Horto fica” está se tornando uma realidade, e o Judiciário pode contribuir para a sua concretização.

*Julio José Araujo Junior é procurador da República no Estado do Rio de Janeiro, procurador regional dos Direitos do Cidadão Adjunto, mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutorando pelo mesmo programa.

**Fernanda Maria da Costa Vieira é advogada popular, professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), co-coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luíza Mahin da UFRJ e  pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) 

***Francisco Trope da Silva Porto é graduando em Direito e extensionista do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luíza Mahin da UFRJ e  pesquisador do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) 

****Mariana Trotta Dallalana Quintans é advogada popular, professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), co-coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luíza Mahin da UFRJ e e  pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) 

*****As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas