Tendo assumido a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) na quinta (28) para um mandato de dois anos, o ministro Luís Roberto Barroso terá diante de si um conjunto de desafios inerentes ao momento histórico e político do país. Especialistas são unânimes em afirmar que um dos principais deles será o de estabilizar a relação entre os Poderes Judiciário e Legislativo.
A questão viveu seu ápice esta semana, com a resposta dada pelo Senado ao julgamento do marco temporal: para revidar o fato de a Corte ter reconhecido o direito originário dos povos indígenas às suas terras, os parlamentares se apressaram em aprovar um projeto que não só legaliza o marco temporal como traz outros penduricalhos. Em esforço concentrado e com agilidade dispensada a poucas pautas, o texto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo plenário em um único dia, o que fez com que o rito fosse interpretado como uma clara revanche ao posicionamento do STF. A votação em tempo recorde se soma ainda aos acenos críticos de diferentes parlamentares insatisfeitos com a Corte.
Não é de agora que os ministros enfrentam críticas – muitas vezes vindas da ala mais extremista da política, mas não só desse grupo – de que estariam legislando no lugar do Congresso Nacional. Além das ressalvas e delicadezas que a questão inspira, fato é que o desafio se coloca diante do nariz do novo presidente do STF, que agora terá de enfrentar a tensão gerada pelos últimos capítulos da relação com o Legislativo.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, ainda não há um status de crise, mas eles são unânimes em afirmar que veem um conflito instaurado.
A cientista política Grazielle Albuquerque lembra que o tribunal vive hoje um tempo histórico em que foi colocado como alvo inédito das rusgas e antagonismos mais salientes que despontaram no cenário político nacional e saltaram para os holofotes nos últimos tempos. A questão ajudou a endossar a tensão com o Legislativo federal, onde um conjunto de bolsonaristas de perfil mais beligerante ataca constantemente a Corte em um clima de pouca disposição democrática. Para além das investidas da extrema direita, políticos de outras colorações ideológicas também veem com reservas algumas posturas do STF.
“Por isso eu não acho que seja uma crise, mas, a depender de como as coisas andem, ela pode se tornar. Acho que a gente vive uma crise maior. Há uma crise sobre o papel do presidencialismo no Brasil, sobre o papel das instituições, uma crise de confiança na democracia. Então, é preciso realinhar o papel do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, inclusive para garantir uma volta ao apoio de parte da população a essas instituições”, afirma a pesquisadora.
A questão toca alguns aspectos da agenda apresentada por Barroso em relação ao que o magistrado pretende pôr em prática. Em seu discurso de posse e também em entrevistas concedidas nos últimos dias, o ministro disse que tem uma plataforma com três eixos para os quais pretende direcionar o trabalho do Supremo no próximo biênio: conteúdo, imagem e relacionamento. No que tange ao primeiro, disse se preocupar com a busca pela proteção dos direitos fundamentais, a preservação da democracia e a melhoria na eficiência do Judiciário.
“Todo presidente do STF tende a querer priorizar algumas agendas. O problema é que muitas vezes acontecem fatos intervenientes que dificultam a vida dos ministros”, afirma o professor Pablo Holmes, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Ele destaca o caráter liberal de Barroso na pauta econômica e também na pauta de costumes, vendo geralmente o Supremo como um protetor dos direitos individuais e também como instituição que pode avançar na proteção de novos direitos.
“Mas eu acho que a presidência dele não vai conseguir fazer com que essa seja a pauta principal, por uma razão simples: a gente teve toda a crise do governo Bolsonaro, temos uma reconfiguração política no país e tivemos o ataque do 8 de janeiro, que, na minha projeção, vão marcar este ano no STF. Não sabemos como vai se processar o julgamento dos crimes relativos aos mandantes do 8 de janeiro, aos financiadores. Há aqueles que articularam politicamente, que lideraram o movimento. Há deputados, senadores e militares de alta patente envolvidos. Isso não vai ser fácil, do ponto de vista político.”
O pesquisador vê o empoderamento de grupos mais conservadores – observado nos últimos anos e também na atual legislatura do Congresso – como um entrave para a presidência de Barroso. O segmento engloba principalmente as bancadas evangélica, da Bíblia e da bala, o que coloca a Corte diante de uma configuração política mais adversa neste momento. O contexto pode gerar momentos de maior estresse para o tribunal por conta da agenda de pânico social ditada por esses grupos.
“O bolsonarismo funcionou nos últimos tempos como um amálgama de oportunistas conservadores, e eles podem se unir. O Barroso vai ter essa agenda complicada do 8 de janeiro e ainda tem as pautas nas quais um cara como ele gostaria que o STF avançasse, como a questão do aborto, das drogas e outras. Isso pode servir como uma oportunidade para a extrema direita atacar o Supremo e tentar enfraquecê-lo. É de interesse de vários setores localizados do Congresso enfraquecer o STF, mesmo que eles tenham razões distintas”, examina Holmes.
Comunicação e relacionamento
Outro eixo que pode se tornar um grande desafio para o novo presidente da Corte é o que diz respeito ao universo do relacionamento com os demais setores sociais. Em entrevista ao portal Migalhas pouco antes de tomar posse, Barroso disse que vê, no aspecto da imagem, um Supremo que ainda se comunica mal com a sociedade e que precisa trabalhar a comunicação com diferentes segmentos.
“Eu entendo que ele esteja correto ao apontar o desafio de se melhorar a comunicação, mas tem que ver exatamente como é que ele vai definir e operacionalizar isso. Se for uma coisa no sentido de aumentar muito a exposição da Justiça, pode ser que o resultado não seja o melhor, e isso pode inclusive cobrar alguns preços. Se for, por exemplo – Gilmar Mendes sempre fala isso –, de comunicar à população as contribuições que a Justiça deu para a efetivação de alguns direitos na pandemia e para a própria defesa da democracia, acho que é um caminho interessante”, diz o professor e pesquisador Fábio de Sá e Silva, da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.
Ele vê adiante riscos relacionados a características da personalidade do ministro, que podem colocar algumas cascas de banana para quem está à frente de uma instituição como o STF. “A comunicação é um desafio para a Justiça. Na sociedade em que a gente está vivendo, permeada por desinformação, é um desafio que fica ainda mais elevado, mas precisa ver como ele vai enfrentar isso. Se achar que é aumentando determinados tipos de exposição da Corte ou de repente tentando simplificar demais a ponto de vulgarizar alguns debates importantes, vejo muita possibilidade de cilada se isso não for muito bem feito.”
Na mesma sintonia, a pesquisadora Grazielle Albuquerque acredita que o aspecto da comunicação e da imagem precisa ser ponderado com cuidado na recém-iniciada gestão do STF. “A questão, para mim, é: em se expondo, o que é que se quer mostrar? Porque uma coisa é mostrar a atuação da Corte tentando esclarecer quais são suas funções e outra coisa é o Judiciário continuar a ser visto como um ator político, por exemplo. Digo político no sentido de às vezes ser equiparado a Executivo e Legislativo”, ressalta a pesquisadora.
“Do meu ponto de vista, acho que essa comparação não é boa para a própria magistratura porque o Judiciário não é um poder eletivo. Ele é, por essência, contramajoritário. Se ele começa a ser identificado como um poder que deve responder diretamente às ruas, perde a sua principal característica, que é a de às vezes se contrapor ao Executivo e ao Legislativo. A opinião pública muda de lado, e muda muito rapidamente. Se o Judiciário começa a andar nessa onda, ele vai ficar dançando”, emenda Grazielle, ao sugerir que o contexto pode gerar insegurança jurídica.
Analistas apontam que o perfil midiático de Barroso também pode se constituir um desafio em si. Chamou a atenção, por exemplo, a festa oferecida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) na quinta (28) à noite para selar a comemoração da nova gestão. O evento reuniu 1.200 pessoas, esbanjou luxo e passou longe da discrição geralmente esperada dos membros do Judiciário. A festança atraiu os holofotes de toda a imprensa nacional, teve direito a uma apresentação de Maria Bethânia, ícone da MPB, e do cantor Diogo Nogueira, com o qual o ministro se arriscou a fazer um dueto.
No dia seguinte, Barroso também concedeu uma entrevista coletiva em que comentou diversos assuntos, desde o tema da legalização do aborto até a espinhosa pauta do porte de maconha, passando ainda pelos ataques do 8 de janeiro, pelos candidatos à vaga que será deixada pela ministra Rosa Weber na próxima semana e também pela relação com o Legislativo. Não é comum, em geral, que membros do Judiciário comentem publicamente assuntos que estão sob análise judicial.
Para Sá e Silva, a inserção do Supremo em uma rota de reconstrução institucional é uma tarefa que exige muita inteligência política e moderação, o que pode ficar comprometido em caso de maior impulsividade. “Ele é um juiz de perfil mais voluntarista e tem excessivo gosto pela mídia. Isso cria muitos riscos. Ele pode cometer erros como cometeu no passado – por exemplo, o episódio do ‘perdeu, mané’ – num momento em que as coisas estão muito instáveis e delicadas. É um tipo negativo de exposição. Em alguns casos, a melhoria da imagem da Corte perante a sociedade requer menos exposição”, observa Fábio de Sá e Silva.
Remuneração
A nova gestão do STF também está diante de problemas relacionados à má fama do Poder Judiciário no quesito remuneratório. Em abril, o Tribunal de Contas da União (TCU) referendou uma medida do ministro Jorge Oliveira que havia suspendido o pagamento adicional por tempo de serviço, os chamados “quinquênios”, dos membros da Justiça Federal. A fatia havia deixado de existir desde 2006, quando foi substituída por outros benefícios, e a decisão do TCU foi precedida por uma maré política em que se tentou aprovar no Senado uma proposta de emenda constitucional (PEC) que resgatava o quinquênio.
O insucesso momentâneo da jornada não significa, no entanto, que os problemas relacionados à questão remuneratória tenham acabado por aí. Um levantamento do portal UOL mostrou que, em maio deste ano, um total de 12,2 mil magistrados no país receberam mais dinheiro que os ministros do STF, cujo salário é considerado o teto do funcionalismo público e hoje está orçado em R$ 41.650,92. “Isso tudo o Barroso poderia e deveria corrigir”, comenta Fábio de Sá e Silva.
Por regra, o presidente da Corte é também quem preside o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que tem entre suas atribuições a busca por melhores práticas no Poder Judiciário. “Importante pensar também que a relação melhor com a sociedade pode se dar a partir do CNJ, e não só do STF. Os tribunais podem, por exemplo, oferecer serviços melhores e a sociedade pode, a partir disso, melhorar sua avaliação sobre o Judiciário”, diz Silva.
Edição: Rodrigo Durão Coelho