"O modo de vida contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados, resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas". É a advertência da psicóloga Jéssica Prudente. Ela é doutora em Psicologia Social e Institucional pela Ufrgs e professora da PUC/RS.
O Brasil de Fato RS conversou com Jéssica no encerramento do “Setembro Amarelo”. É o mês dedicado à campanha de prevenção ao suicídio e à discussão de temas de saúde mental.
No Brasil, acontecem cerca de 12 mil suicídios a cada ano. E o Rio Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios. São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média nacional.
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A psicóloga nota que países como o nosso estão na contramão das taxas globais de suicídios apresentando elevação dos índices. As explicações? São muitas, segundo Jéssica.
É o que ela detalha na entrevista onde conta também sobre os sinais de alerta de suicídio, as taxas “absurdamente mais altas” entre os homens, o papel das redes sociais, a relação entre agrotóxicos e suicídio, o resultado nocivo da exaltação à competição quando o “outro” se converte no inimigo a ser vencido.
Brasil de Fato RS - A Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que, a cada ano, mais de 700 mil pessoas se suicidam. Significa uma em cada 100 mortes registradas. Estamos nos matando mais? Em caso positivo, por quais razões?
Jéssica Prudente - As taxas de suicídio não se distribuem igualmente no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) entre os anos 2000 e 2019, as taxas mundiais de suicídio diminuíram 36%, enquanto nas Américas aumentaram 17%. Então, a resposta para a primeira pergunta é relativa à região do mundo que está sendo analisada. Uma pesquisa publicada esse ano (2023) no “The Lancet Regional Health – Americas” indica a importância dos determinantes sociais para entender os índices de riscos e modos de prevenção do suicídio: gênero, educação, uso de álcool e outras drogas, emprego, entre outros fatores.
Quatro em cada cinco suicídios ocorrem em países de baixa e média renda
A OMS também indica que 79% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda, o que ajuda a responder a segunda pergunta. As razões para o fenômeno do suicídio são multifatoriais, destacando-se desigualdade social, falta de acesso a políticas públicas, presença de transtornos psiquiátricos, vulnerabilidades e uso de álcool e outras drogas.
É importante salientar que as taxas de suicídio são mais altas em grupos populacionais específicos: indígenas, população LGBTQIAPN+, pessoas em situação de privação de liberdade, população negra e que vem ocorrendo um aumento expressivo entre os jovens de diferentes grupos populacionais. Então, pode-se dizer que o aumento das taxas de suicídio tem ligação direta com a desigualdade social, preconceitos, ruptura de sistemas sociais de solidariedade, aumento da competitividade, com a angústia relativa ao modo de vida contemporâneo e falta de expectativas do futuro.
BdFRS - Há outro dado preocupante: acredita-se que, para cada morte por suicídio registrada, existem 20 tentativas não registradas...
Jéssica - Existe uma subnotificação nesses registros, inclusive entre as mortes por suicídio registradas. Muitas mortes por acidentes, comportamentos de risco ou outros eventos trágicos podem ter sido suicídio, sem que isso tenha chegado ao conhecimento dos serviços de saúde. E sim, existem muitas tentativas de suicídio que não chegam a ser efetivadas, nem registradas. Nesse ponto, é importante destacar o trabalho dos profissionais de saúde que precisam notificar situações de violência para a vigilância sanitária que produz os dados epidemiológicos, e muitas vezes, diante do excesso de demanda, os profissionais priorizam o atendimento dos casos em detrimento dos registros, que requer tempo e detalhamento de informações.
No Sistema Único de Saúde, o SUS, temos a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) que inclui serviços de atenção à saúde mental para a população, destacando-se os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que contam com equipes multiprofissionais para atender as demandas de saúde mental, enquanto dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Os municípios com maior número de habitantes contam com CAPS especializados em Infância e Adolescência e em Álcool e Drogas. Esses serviços são fundamentais para prevenção e cuidado em saúde mental da população, ainda que enfrentem as dificuldades e precarizações do desinvestimento nas políticas públicas.
A competitividade, enquanto laço social fundamental, é destrutiva
BdFRS - Como o vício nas redes sociais, a solidão, a individualização extrema, a falta de propósitos potencializam esse desejo de morte?
Jéssica - Somos seres gregários e sobrevivemos, historicamente, em grupos comunitários. A vida humana é coletiva. Podemos pensar que a exposição a grandes grupos de pessoas, centenas e milhares de opiniões, é algo bastante recente e inédito na história, e certamente ainda não temos a real dimensão dos efeitos psíquicos e sociais das tecnologias nos modos de vida, nem sobre a confrontação constante entre o mundo virtual idealizado e a vida fora das redes sociais. Se a solidariedade enquanto laço social primordial é protetiva, a competitividade, enquanto laço social fundamental, é destrutiva, pois o “outro” acaba sendo visto como um inimigo a ser vencido, o que se traduz na ênfase da individualização extrema, naturalizando as relações de violência.
As redes sociais reduzidas a padrões estéticos, likes e lucro podem se tornar um ambiente hostil
As tecnologias, em si mesmo, não necessariamente produzem apenas individualização e solidão, pois há muitos modos de socialização, engajamentos, participação política, diversão, jogos, informações e integrações facilitadas pelas tecnologias. Hoje é possível que pessoas encontrem seus pares e se sintam acolhidos e pertencentes a uma infinidade de grupos, com diversas trocas e aprendizados que podem ser saudáveis, potentes e inclusivos. Entretanto, as redes sociais quando reduzidas aos critérios de padrões estéticos, métricas de likes e lucro podem sim tornar-se um ambiente hostil, nocivo, violento e excludente.
Talvez o que a internet e as redes sociais facilitem é uma falsa sensação de participação e engajamento, quando o que está sendo potencializado é a individualização. A busca de sentido para a vida é algo que acompanha a humanidade, e a falta de um propósito não é relativa apenas aos usos e desusos tecnológicos, mas possivelmente aos valores que estão sendo cultuados e oferecidos como horizonte. Não podemos esquecer que vivemos uma pandemia em que o medo, a angústia, o adoecimento, o isolamento e a morte passaram a ser presença constante na vida das pessoas, nos noticiários e na vida cotidiana, o que certamente ainda tem efeitos na saúde mental e um impacto significativo na relação com a tecnologia.
BdFRS - Na frase famosa do escritor francês Albert Camus, o suicídio é “o único problema filosófico verdadeiramente sério”. Ele escreveu que “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”. As pessoas se matam ao sentirem desesperança ante o absurdo da vida ou atrás dessa percepção existe uma patologia que, ela sim, determina o desfecho?
Jéssica - Acho que essas duas dimensões não estão separadas. Albert Camus chama de “absurda” a nossa condição humana de fazer tudo o que fazemos tendo consciência da própria morte, e é sobre essa condição que construímos séculos de civilização, cultura, arte, linguagem. No campo da saúde mental, a vida tem uma referência marcadamente normalizada, pois os diagnósticos são produzidos e os tratamentos são prescritos a partir da comparação com um ideal de normalidade. Nos manuais de prevenção ao suicídio vamos encontrar as estatísticas de que, na maioria dos casos de suicídio, existe uma condição de transtorno ou patologia psiquiátrica.
Não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente
Uma questão importante a ser colocada, antes da pergunta sobre a psicopatologia, é sobre o que se entende por saúde mental atualmente e sobre o que se considera como normalidade. Um filósofo indiano chamado Jiddu Krishnamurti já dizia que “não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente”. O modo de vida contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados, resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas. As pessoas estão sempre cansadas, exaustas e sem energia, e em estados mais agudos isso ganha contornos de um transtorno psiquiátrico ou psicológico.
A taxa de suicídios entre pessoas com transtornos psiquiátricos severos e persistentes não chega a 10% do total de suicídios. Então, podemos entender as “patologias” não apenas em termos individualizantes, reduzidas as questões biológicas e genéticas, mas como produzidas socialmente, pois os índices da OMS apresentados no início da entrevista nos mostram o quanto as questões dos determinantes sociais produzem sofrimento e são adoecedoras, como, por exemplo, a depressão.
As taxas de suicídio entre homens são muito mais altas do que entre mulheres
BdFRS - O Rio Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios do Brasil. São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média nacional. Qual a explicação?
Jéssica - O suicídio é um fenômeno multifatorial, complexo e se distribui de modos diversos entre a população. Países como o Brasil estão na contramão das taxas de suicídio globais, apresentando aumento nesses índices e o Rio Grande do Sul figura como o estado brasileiro com maior número de casos. As explicações são variadas e precisamos buscar os dados de pesquisas da Saúde Coletiva, da Epidemiologia para pensar em algumas linhas possíveis de explicação.
Em termos epidemiológicos, as taxas de suicídio entre homens são muito mais altas do que entre mulheres. Mulheres apresentam mais tentativas, mas homens concretizam o suicídio em taxas absurdamente mais altas. Todos os índices de comportamentos violentos, trágicos e negligentes são maiores entre homens: acidentes, homicídios, conflitos, suicídios, baixa procura por prevenção em saúde e por atendimento em saúde mental.
Em que pese as explicações biológicas, percebemos que temos no Rio Grande Sul uma cultura conservadora, machista, tradicional, colonial que produz as masculinidades em um espaço bastante reduzido em termos de nuances afetivas e emocionais, dificultando a busca por auxílio. Ainda existem estigmas sociais que associam a busca de ajuda e o reconhecimento do sofrimento a uma noção de fragilidade, o que é evidenciado em relação a masculinidade.
O uso de agrotóxicos aparece nas pesquisas como vinculado ao aumento de suicídios
Outro fator importante do RS diz respeito ao trabalho rural e ao uso de agrotóxicos que aparecem em pesquisas como fator de vinculação com aumento de suicídio, o que constitui uma base importante de trabalho em nosso estado. 98% da produção de fumo do Brasil, por exemplo, é fornecida pela região sul, sendo a maior concentração no estado do RS e existem taxas bastante elevadas de suicídio em municípios da região do Vale do Rio Pardo.
A questão do isolamento de algumas regiões e a distância de dispositivos de saúde também pode dificultar a busca por auxílio. Nosso estado também tem grande número de indígenas que vivem situações de conflito e de preconceito e apresentam números preocupantes em relação aos índices de suicídio, principalmente entre jovens. Ainda, temos a questão do clima frio e chuvoso, que aparece em algumas pesquisas como associado ao aumento de números de suicídios.
Importante destacar que traçar relações de causa e consequência lineares nos casos de suicídio é uma simplificação de um fenômeno complexo, multifatorial e produzido socialmente. As questões de gênero e do trabalho rural indicadas como possíveis fatores associados aos índices altos de suicídio no RS são prevalências apontadas em pesquisas, mas não encerram as possíveis explicações.
Outro comportamento mais comum entre jovens é a automutilação
BdFRS - Quais são os sinais que o corpo e a mente dão quando algo não vai bem em relação à saúde mental?
Jéssica - Inicialmente, importante destacar que o nosso modo de vida atual tem sido desgastante, exigente em termos de produtividade, de acesso a informação e de enfrentamento de situações individuais e sociais que são estressores, com poucos espaços para o descanso e o lazer.
Quanto aos sinais de agravamento da saúde mental, existem vários aspectos que podem ser experimentados: irritabilidade, ansiedade, angústia, falta de motivação, diminuição na energia e na sensação de prazer e alegria, desânimo, distúrbios do sono, dificuldades de concentração, entre outros. A questão importante a ser avaliada é relativa à constância e frequência dessas sensações, pois ter dias difíceis, momentos mais complicados ou exigentes em que esses sinais se apresentam faz parte da vida. Entretanto, quando isso se instaura de modo habitual e constante, pode ser importante buscar ajuda.
BdFRS - Que comportamentos podem ser vistos como preocupantes?
Jéssica - Sinais de risco são pensamentos obsessivos, pessimistas ou sem esperança seguidos de mensagens ou falas autodestrutivas; alterações bruscas de humor (raiva, vergonha, culpa, ansiedade) ou comportamentos irresponsáveis, como de quem não tem nada a perder; felicidade ou melhora súbita frente a um quadro de depressão; reconciliações inesperadas, desapegos de seus bens, entre outros. Quaisquer desses comportamentos devem ser avaliados inseridos em um contexto mais amplo da vida da pessoa, e não isoladamente.
Outro comportamento mais comum entre jovens é a automutilação, no qual a dor física pode contribuir para a redução da dor psicológica, mas nem sempre está acompanhado de ideação suicida.
BdFRS - Qual a importância e quais as principais dicas para cuidar da saúde mental?
Jéssica - Construir uma vida com sentido e propósito é benéfico para a sensação de bem-estar. Praticar exercícios físicos, ter momentos de lazer, encontrar amigos e familiares, aceitar momentos de tristeza como parte da vida, buscar terapia, podem contribuir para a produção da saúde mental.
Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério
BdFRS - Quais as principais formas de se prevenir o suicídio?
Jéssica - Suicídio não é um vírus ou uma doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples. Pensar sobre a vida e a morte é “demasiadamente humano” e faz parte do processo vital. Prevenir o suicídio, desse modo, passa pela construção de uma vida que se deseja viver, com sentido, rede de apoio, propósitos, acesso aos direitos fundamentais, com liberdade e dignidade. Talvez seja importante pensar sobre onde está a vida na prevenção, pois quando se consegue evitar um suicídio, como essa vida irá seguir depois?
Especificamente, a prevenção do suicídio em termos comportamentais, quando há uma ideação suicida ou planejamento em curso, pode incluir as seguintes ações: mostrar-se disposto a escutar e não relativizar ou julgar o sofrimento do outro; estabelecer uma postura de acolhimento e abertura; incentivar a pessoa a buscar ajuda especializada, de um psicólogo ou psiquiatra; mostrar-se presente e disponível; em casos mais severos, de surto ou tentativa, a pessoa deve ser conduzida a um pronto atendimento.
Se você enfrenta um momento difícil: ligue para o 188, voluntários do Centro de Valorização à Viva (CVV). Estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno