O 11 de setembro de 1973 marcou um aprofundamento do intercâmbio entre ditaduras na América do Sul
Por Giovani del Prete*
Este mês de setembro marca os 50 anos do golpe contra a Unidade Popular (UP) e da morte do presidente chileno Salvador Allende. Há muito o que aprender com a experiência histórica do primeiro governo socialista eleito no mundo, e são muitas as razões que explicam o triunfo e o apoio popular ao projeto da UP. Ao mesmo tempo, foram muitas as sabotagens – internas e externas – que incendiaram as ruas do Chile naquele 11 de setembro de 1973, impactando não só o povo chileno, como também todo o projeto terceiro-mundista, da América Latina à Ásia.
Salvador Allende era médico de formação, de uma família da alta classe média chilena e, acima de tudo, um militante socialista. Allende foi um dos fundadores do Partido Socialista do Chile em 1933 e, em 1937, foi eleito deputado; em 1939, foi nomeado para chefiar o Ministério da Saúde do governo de Aguirre Cerda e, desde 1952, concorria à presidência do país, sendo eleito apenas na quarta tentativa, em 1970, com pouco mais de 36% dos votos. Durante toda a sua trajetória, Allende publicou livros, implementou políticas e lutou para garantir vida digna ao povo chileno, já que compreendia que não seria possível melhorar a saúde da população se não houvesse a superação da desigualdade social.
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Apenas para termos um exemplo, nos primeiros seis meses de seu governo enquanto presidente, a porcentagem de crianças hospitalizadas por desnutrição reduziu de 60% para 8%, fruto da política de fornecimento de meio litro de leite por dia às crianças nas escolas. Em 1971, o governo socialista liderou uma votação de emenda constitucional, quando foi aprovada de forma unânime no Parlamento a nacionalização e estatização do cobre, elemento crucial para o desenvolvimento da economia chilena. Até aquele momento, a exploração do cobre contava apenas com o domínio de capitais estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos.
Não faltam exemplos que evidenciam o corte humanista e revolucionário do governo da UP.
Arte e cultura também foram indispensáveis para o aprofundamento das transformações em curso, colocando o povo trabalhador e os mapuches no centro da história nacional, ao destacar a importância da população na construção de um futuro socialista que estava em pleno desenvolvimento. Só o projeto editorial Quimantú – que significa “sol do conhecimento”, em mapuche – foi responsável pela produção e distribuição de 12 milhões de livros e revistas dos mais variados gêneros (esporte, infantil, cultura, política etc), para um país que, na época, tinha cerca de 9,8 milhões de habitantes.
Não há como deixar de destacar outro legado fantástico de todo esse processo: o movimento sociocultural Nueva Canción Chilena, que tem suas raízes nos anos 1950 com Violeta Parra. Sob a inspiração da Revolução Cubana, Nueva Canción Chilena tinha o objetivo de afirmar a cultura popular e um novo mundo, mais justo e solidário. Este movimento foi capaz de inspirar diversos outros países, como Argentina (Nuevo Cancionero), Brasil (MPB) e Cuba (Trova).
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Em termos táticos, diferentemente do que foi a Revolução Cubana, Chinesa ou Bolchevique, a via chilena para o socialismo é caracterizada pela tentativa de não recorrer às armas para alçar seus objetivos. Sua lógica centrava-se na construção do socialismo de forma pacífica, por meio de uma maioria política que aprovaria reformas estruturais e, gradualmente, as políticas pró capitalistas seriam substituídas por políticas de outra natureza. O fato do processo revolucionário chileno ter contato com muito apoio popular, revela que o golpe no Chile explicita a intransigência das classes dominantes e do imperialismo estadunidense a qualquer projeto político que não seja o fortalecimento do capitalismo.
A direita chilena e os Estados Unidos sabiam que perderiam novamente para a UP nas eleições de 1976. Antes mesmo de tomar posse, Allende já era alvo dos Estados Unidos. Como mostram as dezenas de milhares de arquivos secretos que foram publicizados décadas depois, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, deu ordens a seu embaixador no Chile para impedir a posse de Allende, para “fazer nada menos do que uma ação do tipo dominicano”, ou seja, repetir o modus operandi da República Dominicana, invadida pelos EUA em 1965 para derrubar o governo eleito de Juan Bosh e, na sequência, instalar o governo de Joaquin Balager, um grande amigo de Washington.
Os Pinochet Files mostram o fulminante apoio do Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança da Casa Branca, Henry Kissinger, à ditadura chilena. Kissinger foi o maior advogado da ditadura, garantindo o fornecimento de milhões de dólares e equipamentos militares a Pinochet. Quando questionado de seu apoio a um governo que cometia flagrantes violações de direitos humanos, ele respondeu que “devemos entender nossa política de que, por mais desagradável que seja sua atuação, o governo [de Pinochet] é melhor para nós do que Allende foi”.
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Além de derrotar a via pacífica de construção do socialismo, a unidade entre as forças golpistas – internas e externas – também ajudou a golpear fortemente a América Latina e o Terceiro Mundo, ao enfraquecer o projeto da Nova Ordem Econômica Internacional (Noei), como bem relembra o mais recente dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O golpe contra o Terceiro Mundo: Chile, 1973.
A Noei foi uma proposta encabeçada pelos países do Terceiro Mundo e liderada pelo economista Raúl Prebisch, e reunia o chamado Movimento dos Países Não-Alinhados, que buscavam reestruturar o sistema econômico internacional ao romper com as relações neocoloniais entre os países do Norte e Sul Global.
Para se ter uma ideia, nos anos 1970, cerca de 60% da produção mundial de cobre estava nas mãos de um conjunto de seis empresas com sede nos Estados Unidos, Inglaterra e Bélgica. Neste sentido, a nacionalização e estatização do cobre no Chile representava uma dessas políticas propostas no bojo da Noei, que buscava fortalecer e a emancipar econômica e politicamente os países do Terceiro Mundo.
Neste período, além do triunfo dos socialistas chilenos, o imperialismo estadunidense também amargou derrotas importantes em outras partes do Sul Global, como na Guerra do Vietnã e o avanço do internacionalismo proletário da Revolução Cubana, que fortalecia os processos de libertação nacional em Angola e Moçambique, além das lutas para derrotar o apartheid na África do Sul com a Operação Carlota. Isso nos permite entender a dimensão internacional e imperialista do golpe no Chile, já que o projeto socialista da UP atacava precisamente os interesses de uma poderosa burguesia, sob um contexto de acúmulo de forças do campo socialista e terceiro mundista.
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No dia 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet traiu o povo chileno ao se tornar o responsável direto pela morte de Allende e liderar o golpe que bombardeou o palácio presidencial, colocando tanques nas ruas, perseguindo, torturando e assassinando chilenos por longos 17 anos em que esteve no comando do país.
Com o apoio da burguesia chilena e do imperialismo estadunidense, a ditadura de Pinochet desmantelou todas as políticas desenvolvidas pela UP, ao mesmo tempo em que empregou os economistas egressos das universidades estadunidenses e colocou no centro das decisões econômicas do país os Chicago Boys e outros seguidores de Milton Friedman. De um governo socialista que concretizava a marcha para a transformação e afirmação do povo chileno como dono de seu próprio destino, o Chile foi submetido à terapia de choque para, violentamente, ser convertido em um laboratório do neoliberalismo.
O 11 de setembro de 1973 também marcou um aprofundamento do intercâmbio e articulação entre as várias ditaduras militares em curso na América do Sul. Sob o contexto da Guerra Fria e orientadas ideologicamente pela Doutrina de Segurança Nacional dos Estado Unidos, as ditaduras no Paraguai (1954), no Brasil (1964), na Bolívia (1971), no Uruguai (1973), no Chile (1973) e na Argentina (1976) organizaram um esquema de colaboração e trocas de informação entre os países. De novas técnicas de tortura ao fornecimento de informações estratégicas para a repressão continental, o chamado Plano Condor materializou esta cooperação entre os distintos regimes autoritários e subordinados ao imperialismo.
Contudo, tão importante quanto a denúncia e a compreensão dos motivos que levaram ao golpe é a necessidade de extrairmos algumas lições desse potente processo de construção do socialismo, e analisar os atuais desafios e oportunidades da nossa região. Há um arsenal de elementos que seguem vigentes para o acúmulo de força anti-imperialista e socialista em Nuestra América. Primeiro, é preciso destacar a importância do compromisso com o projeto popular, ao lutar por reformas socialistas que garantissem os direitos básicos à classe trabalhadora.
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Segundo, é imprescindível o fortalecimento da integração latino-americana e caribenha para criar as condições de desenvolvimento e soberania dos nossos países. Temos muito trabalho pela frente para promover esta unidade continental, principalmente no que diz respeito à construção de laços de amizade, solidariedade, cooperação e lutas entre as organizações populares.
E, terceiro, não podemos alimentar expectativas de que as Forças Armadas, doutrinadas pelos manuais elaborados nos Estados Unidos, terão um inequívoco compromisso democrático. A “questão militar” é um desafio vivíssimo para a maior parte dos governos da região, uma vez que há um contingente expressivo de setores do Exército, Marinha, Aeronáutica e das polícias estaduais na militância da direita ou extrema-direita. A união cívico-militar na Venezuela é um exemplo de como é fundamental o aprofundamento de uma cultura democrática nas forças de segurança do Estado para defender a pátria e respeitar a soberania popular.
A grande tarefa para a qual a história segue nos convocando está centrada no acúmulo de forças dentro e fora de nossas fronteiras, a partir de uma unidade popular em torno de políticas socialistas. No começo do mês de setembro, a Alba Movimentos confirmou esta lição, ao realizar a Conferência Regional Dilemas da Humanidade, onde foi tirado sínteses e intercâmbio da construção do socialismo de hoje. Mais de 130 organizações populares de 23 países se reuniram na comuna de Recoleta, no Chile, para reafirmar que o sonho de Allende continua sendo o sonho de muitos e faz parte da nossa construção cotidiana.
*Giovani del Prete é membro da Secretaria Continental da Alba Movimentos e mestrando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas