O poder é uma droga. Eu olho para Brasília e vejo uma praça de drogados.
A luta contra o autoritarismo brasileiro é um combustível para Pedro Cardoso, desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2018. Em suas redes sociais, o ator não se furta ao comentar notícias relacionadas ao tema, e alertar os maneirismos da sociedade que possam encontrar eco no que ele chama de "fascismo brasileiro".
O assunto moveu tanto Pedro Cardoso que, além de um livro lançado em 2019, o ator está em cartaz com duas peças sobre o tema: O Recém Nascido, em cartaz no teatro Clube Barbixas de Comédia, e À Sombra do Pai, no Teatro Morumbi Shopping. Entre um espetáculo e outro, Cardoso conversou com o Brasil de Fato para uma edição especial do BdF Entrevista.
Suas críticas no teatro, nas redes sociais e em entrevistas, não poupam ninguém. Segundo o ator, sua "liberdade" advém de uma luta contra o poder.
"Eu não tenho nenhum desejo de ter poder, inclusive, nem no teatro. O meu teatro é um teatro que eu tento desempoderar o próprio ator, para que o próprio poder do ator seja compartilhado pela plateia. Como eu não tenho ambição de poder, eu também não tenho rabo preso, nem coisas que eu não possa dizer", explica Cardoso.
É esse poder, segundo o ator, que acaba criando desvarios no mundo político e uma inversão das atribuições originais de quem dita as regras em Brasília, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário.
"O poder é uma droga. Eu olho para Brasília e vejo uma praça de drogados tão intensa quanto a do centro da cidade de São Paulo", comenta.
"Eu vejo uma praça de cracudos, de pessoas alucinadas. As pessoas que têm poder saem da realidade, já não vão a banco, já não vão a lugar nenhum. Político se elege, acha que sabe o que o povo quer. Não sabe. O povo é que sabe o que quer quando te elegeu. O político não tem que votar de acordo com a sua consciência, ele tem que votar de acordo com a consciência de quem o elegeu", completa Cardoso.
Você pode conferir a íntegra dessa entrevista no Youtube do Brasil de Fato. Aqui, confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Pedro, você está em cartaz aqui neste teatro (Clube Barbixas de Comédia), em São Paulo, com uma peça de stand up, O Recém Nascido...
Pedro Cardoso: É um falso stand up...
É um fake…
É, eu falo falso porque uma das coisas que eu acho que atrapalha a nossa vida é a gente incorporar as expressões estadunidenses, assim, sem nenhuma crítica a ela. Quando a gente vê, a gente está falando fake news. Porque diabo a gente está falando fake news, quando o nome disso é mentira, desonestidade intelectual?
Existem expressões em português que dão conta disso, e quando a gente fala numa língua estrangeira, nós não temos afeto por aquelas palavras. Quando eu falo assim, "I love you", é muito mais fácil para mim do que dizer 'eu te amo". Porque eu ouvi "eu te amo" quando eu era pequeno e nunca ouvi "I love you". Então, "I love you" é uma coisa que parece que não é o meu mundo.
Para mim, fake news é o mesmo tipo de coisa. Eu acho que nós devemos nos policiar um pouco para não aceitarmos tão passivamente esses conceitos estadunidenses, porque junto com eles vem a ideologia deles, vem os hábitos culturais deles, tem uma opção de coisas que não nos pertencem, e a gente fica se iludindo.
Então, eu não digo que é um fake stand up, eu já falo que é um falso stand up, onde eu já provocou um encontro desagradável entre uma palavra em português, que é "falso", e a expressão americana "stand up", que eu já odeio, porque ela em português, o que que ela significa? Nada. Entretanto, ela virou um label - olha eu - uma marca de um determinado tipo de teatro, um teatro que não tem personagem, um teatro que é feito na primeira pessoa do ator.
Eu fiz esse falso stand up porque eu não acho que é uma coincidência a ascensão dessa onda de comédias solitárias, na primeira pessoa, que é um stand up, com a ascensão do fascismo no Brasil. Quando isso começou a surgir, haviam muitas pessoas engajadas nessa ansiedade de fazer esse tipo de humor, que eram tão mal educadas quanto o fascismo brasileiro é e foi, e se demonstrou ser.
A falta de educação é um dos pilares do fascismo brasileiro, porque a falta de educação impede uma conversa consequente. Se eu te ofendo aqui, se eu te desrespeito, você faz uma pergunta, eu falo, "pega esse microfone e que se dane…", o objetivo da nossa conversa desaparece, a escuta, a argumentação consequente. Essa agressividade que se disfarça de uma aparente espontaneidade muito… "pô, eu falo assim, porque eu sou assim, que eu falo o que eu sinto, que eu não estou aí para o establishment político" - outra expressão em inglês - ela é muito constituinte desse fascismo.
E quando essa comédia solitária apareceu, muitos desses comediantes tinham o mesmo comportamento do fascismo, e depois se revelou que muitos deles apoiaram Jair Messias Bolsonaro. Tem uma agressividade desrespeitosa que não é direito de ninguém. Eu estava pensando sobre isso hoje de manhã, ainda que o humor deva desrespeitar. O humor é um desrespeito, mas a quê? Ao poder e não às pessoas. Essa, para mim, é a diferença do humor, ele é sempre uma afronta às estruturas de poder.
Eu posso fazer uma piada maravilhosa sobre uma estrutura de poder sindical. Eu posso fazer uma piada maravilhosa sobre estrutura de poder doméstico, conjugal, paternal, mas eu não posso fazer uma piada ofensiva a um específico líder sindical, entendeu? Isso, para mim, é a grande diferença. Quando eu personalizo o meu espetáculo, eu não estou mais falando do tema, estou falando de alguém.
Aí, eu estou obrigado a todos os respeitos que nós temos que ter uns pelos outros, mas nós não temos que ter respeito pelo poder, pelo contrário, ele não merece o nosso respeito, porque raramente o poder pertence a quem deveria.
E você acredita que o humor tem limites? Há diversos humoristas e programas, como o do Porta dos Fundos, que foram alvo de censura, ao tocar em alguns temas...
Eu acho que tudo tem limite. Nada não tem limites. A própria Constituição contempla um pouco isso, que todo limite é limitado pelos outros direitos, todos os direitos são limitados pelos outros direitos, nenhum direito é absoluto. Eu acho que o humor tem limite, é difícil precisar em que momento o humor atravessou um limite ou em que momento o sensor do humor está atravessando o limite.
É mesmo uma questão bastante complexa, na minha opinião, porque a função do humor, na sociedade, é ser um crítico ao poder. Toda piada, no fundo, é uma piada que denuncia uma estrutura de poder e uma estrutura opressiva. Obviamente, o humor incomoda os poderosos. Se o Porta dos Fundos faz uma piada sobre a sexualidade de Jesus Cristo, isso incomoda quem vê no cristianismo uma possibilidade de poder, um modo de exercer poder.
Se eu fizer uma piada sobre um partido comunista, dentro de um país comunista, provavelmente aquele poder vai querer me censurar. Então é complicadíssimo limitar o poder. Entretanto, eu acho que não há muita dificuldade quando você chega na ofensa pessoal. Eu não cito o nome de quase ninguém, eu tenho uma piada que eu faço agora com o Carlos Alberto da Nóbrega, mas é uma piada muito assim... o personagem é posto de castigo no banco da Praça, e eu falo: "eu fiquei lá, sentado ao lado do Carlos Alberto da Nóbrega".
Uma piada sem grande ofensa à pessoa dele. Às vezes eu falo assim: "ainda tive que aguentar ele falar mal do Lula", porque é uma coisa que ele fez, mas eu não ponho adjetivos nele, eu não ofendo a família dele, eu não digo que ele merece coisas horrorosas. Quando esse humor apareceu, esse que eu me refiro que é igual, na sua falta de educação, ao fascismo do Bolsonaro, ele era um humor que ofende as pessoas nominalmente.
Na primeira pessoa, o comentário preconceituoso é preconceituoso. Agora, na terceira pessoa, se eu fizer em cena um personagem que ele é preconceituoso, e eu puser na boca dele as expressões do preconceito, eu não estou confirmando o preconceito do personagem, eu estou denunciando o comportamento preconceituoso que existe na sociedade
Aproveitando que você falou sobre o fascismo e como ele se espraiou na nossa sociedade, a gente viveu quatro anos de uma intensificação disso. É possível a gente extirpar esse tipo de comportamento da nossa sociedade? Porque parece que esse comportamento encontrou eco em diversos setores, religiosos e ultraconservadores. Há muito se diz que o bolsonarismo, enquanto força política, perde cada vez mais força, inclusive se ele for preso, mas o bolsonarismo, como ideia, parece muito presente…
É, Zé, não sei se você vai concordar comigo, eu identifico comportamentos autoritários dos quais o fascismo é apenas o mais radical. O fascismo é aquele autoritarismo que se acha no direito de eliminar fisicamente o opositor. O autoritarismo tem antecedentes mais brandos, digamos assim, mas eu percebo ele em toda a sociedade, dentro dos sindicatos, dentro da estrutura militar, daquela hierarquia militar dentro das escolas, na educação dos filhos, o modo como a gente educa as crianças, dentro das relações entre homens e mulheres, dentro das relações entre torcedores e jogadores de futebol.
Eu acredito que a sociedade brasileira pode e deseja caminhar para uma sociedade menos autoritária. Por exemplo, no momento atual, eu percebo muito autoritarismo até identidades coletivas, seja por ancestralidade, seja por gênero, pelo desejo de impor o seu tema à totalidade dos temas. A vida se dá numa grande diversidade de momentos, nem tudo está presente o tempo todo em tudo.
O Paulo Freire, que é um homem que vale a pena a gente olhar com muito mais interesse, diz que o oprimido que não é criado para a liberdade, quando chegar ao poder, ele será um opressor. Isso é uma verdade muito incômoda, muito dolorosa, principalmente quando você ainda está vendo historicamente determinados grupos da sociedade, as mulheres, os afrodescendentes, os orientais, as crianças, diversos grupos e principalmente, o empobrecido.
Nas redes sociais você costuma se colocar, se expor aos debates, levanta questões e não tem muito receio de agradar alguém…
Eu não tenho ambição de poder, entende? Eu não tenho nenhum desejo de ter poder, inclusive, nem no teatro. O meu teatro é um teatro que eu tento desempoderar o próprio ator, para que o próprio poder do ator seja compartilhado pela plateia. Como eu não tenho ambição de poder, eu também não tenho rabo preso, nem coisas que eu não possa dizer.
Como você lida com essa liberdade?
Eu lido bem, quem lida mal é quem tem ambição de poder. Eu fui muito crítico ao PT já, ainda sou, o PT é um partido dedicado ao poder. Eu acho que a humanidade tem uma questão com o exercício do poder e ela acomete todas as pessoas, principalmente aqueles que têm paixão pelo poder.
O poder é uma droga. Eu olho para Brasília e vejo uma praça de drogados tão intensa quanto a do centro da cidade de São Paulo. Eu vejo uma praça de cracudos, de pessoas alucinadas. As pessoas que têm poder saem da realidade, já não vão a banco, já não vão a lugar nenhum. Já tem um carro que pega na porta e vai ficando descolado da vida banal, da vida dos outros, e eu acho isso um problema gravíssimo, acho aquilo um delírio.
E eu acho que o poder é quimicamente viciante, aquela adrenalina permanente. Não há um dia banal em Brasília, todo dia é dia de negociata e o povo, na minha opinião, fica completamente afastado. Político se elege, acha que sabe o que o povo quer. Não sabe. O povo é que sabe o que quer quando te elegeu. O político não tem que votar de acordo com a sua consciência, ele tem que votar de acordo com a consciência de quem o elegeu. Ele é representante, ele não está lá para fazer o que quer, está lá para fazer o que ele disse que faria.
Eu assisti a um documentário recentemente chamado Rindo à Toa, que falava sobre o teatro que você, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, o Miguel Falabella, entre outros, trouxeram nos anos 1980, um teatro debochado. Houve muitas críticas a vocês naquela época, estávamos iniciando a redemocratização e havia uma expectativa de que o teatro fosse sempre engajado, reflexivo e político. Como lidou com as críticas?
Foi menosprezo mesmo. Eu lidei muito mal, havia essa dominância do teatro político e de um outro teatro que a gente, até um pouco preconceituosamente, chamava de comercial, quando na verdade era uma tradição do teatro brasileiro, vinda do teatro europeu.
O que não havia muito era comédia psicológica. Na verdade, toda a comédia é um comentário também sobre a psicologia. O que fizemos naquela nossa geração, muito à partir do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo do Luiz Fernando Guimarães, do Daniel Dantas, do Evandro Mesquita, da Patrícia Travassos, da Regina Casé, foi trazer a psicologia para dentro do humor.
Eu e o Felipe Pinheiro, meu colega de então, e seguindo a orientação dele, entramos nessa onda, e o Miguel Falabella também, e formou-se um teatro que foi pejorativamente chamado de “Besteirol”, a partir de um release que o Felipe escreveu dizendo que o nosso espetáculo não é sobre nada, é só besteira.
Era uma provocação com aquele teatro muito marxista que se fazia com a eliminação das subjetividades, tão características do pensamento obsessivo marxista - embora Marx tenha vários trabalhos sobre a subjetividade, inclusive sobre a cultura, mas muitos marxistas não leem esses trabalhos sobre a cultura, só aqueles de aspecto econômico.
E nós fomos menosprezados pela inteligência, que via no nosso teatro uma falta de assunto, enquanto que o que a gente mais tinha era assunto. Mas o humor é sempre vítima dos poderes, a academia é um modo de poder, que também pretende ser ela a dona do saber. O saber, para o acadêmico, não está no que ele estuda, mas está nele. Quando ele se vê diante de uma arte que apresenta alguma novidade, que ele não estudou na academia, ele tem que enquadrar aquilo dentro de um menosprezo intelectual.
Edição: Rodrigo Durão Coelho