As falas de Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden na abertura da 78ª Assembleia-Geral da ONU tiveram uma série de semelhanças temáticas: fome no mundo, desigualdade, eventos extremos, como a mudança climática, e a necessidade de democratizar a ONU e a governança global como um todo. Mas um assunto marcou divergências claras entre eles: os países caribenhos e, em particular, o embargo a Cuba.
“O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo”, disse o presidente brasileiro nesta terça-feira (19), na sede da ONU, em Nova York.
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A menção ao embargo ocorreu no final do seu pronunciamento, portanto pouco antes de o presidente estadunidense subir ao púlpito — os Estados Unidos mantém Cuba sob embargo comercial e econômico há seis décadas e também numa lista de países patrocinadores de terrorismo, o que também prejudica Havana comercialmente.
“Foi uma bofetada direta nos Estados Unidos, o único tema que me surpreendeu no discurso do Lula”, disse ao Brasil de Fato Paulo Velasco, professor de Política Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A Assembleia da ONU condenar o embargo é algo corriqueiro, segundo ele. “Mas é diferente de o presidente brasileiro falar isso na cara do Biden. Certamente houve diplomatas mais ponderados que devem ter pedido para deixar de fora”.
É interessante notar que, antes de chegar a Nova York, Lula esteve em Havana, para participar da cúpula do G77 + China, encontro multilateral que reúne os países do Sul global mais o gigante asiático. Na ocasião, o embargo foi um tema recorrente.
Para Tatiana Berringer, professora de Relações Internacionais na UFABC, o fato de o embargo estar presente no discurso de Lula demonstra “relativa autonomia do Estado brasileiro em relação aos EUA”, uma espécie de “margem de manobra”. Ou seja, não obstante a boa relação entre os dois governos, Lula faz questão de afirmar a condenação aos embargos, que de maneira geral prejudicam mais as populações do que os governos, e assim colocar o Brasil como representante do Sul global. “Foi uma demonstração de que o Brasil volta ao palco internacional com a defesa de suas pautas históricas”.
Joe Biden não falou nada sobre Cuba. Mas expressou preocupação com outro país caribenho, o Haiti, que vive uma grave crise que está fazendo boa parte de sua população tentar fugir para evitar a violência desenfreada. O presidente estadunidense, destacando esse trecho com particular ênfase, defendeu a necessidade de se enviar uma missão de paz ao país e cobrou uma resolução do Conselho de Segurança.
“O Haiti preocupa muito os EUA. Qualquer pepino ali, migrantes se metem em balsas pra tentar migrar”, diz Velasco, lembrando que a Minustah, missão de paz liderada pelo Brasil até 2017, não resolveu os problemas estruturais do Haiti. Talvez por isso mesmo, Lula tenha falado sobre o tema de forma mais sucinta, e dentro do contexto de outras questões humanitárias.
“É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças. Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino. A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão”, discursou o brasileiro.
O eixo principal do discurso de Lula, segundo Tatiana Berringer, foi a desigualdade. Após dizer que as 17 metas de desenvolvimento sustentável do milênio, a chamada Agenda 2030, devem ser tratadas de forma integrada e global, o presidente brasileiro afirmou que o Brasil vai trabalhar numa 18ª pauta, focada na questão racial. “Isso é importante para a identidade internacional do Brasil, para ressaltar a herança histórica, a presença dos negros na formação do país, e para as relações com países da África”, analisa a professora.
A fala de Lula, para ela, sintetiza a busca do Brasil por justiça, igualdade, soberania e multilateralismo, que são “pautas históricas, necessárias, alinhadas a um governo progressista e necessárias nesse momento histórico”.
Ucrânia
Todos os itens listados acima estão presentes no debate sobre a guerra na Ucrânia, que Lula mencionou em dois momentos. “A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU”, discursou o presidente, que em seguida defendeu que só haverá solução duradoura se for baseada no diálogo e criticou o Conselho de Segurança da ONU, em particular os membros permanentes, “que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime”.
Os membros permanentes são a Rússia, que invadiu a Ucrânia, mas também os Estados Unidos, que invadiram o Iraque em 2003, a França, o Reino Unido e a China. Dos cinco países, apenas os EUA estão representado por seu líder máximo na Assembleia-Geral.
O Brasil tem tradição de defender a não intervenção e as soluções negociadas, o que inclusive explica a tradição de poder fazer o primeiro discurso, explica Berringer. Na opinião dela, é isso que deve acontecer no encontro bilateral entre Lula e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, marcado para esta quarta (20). “O que dá para esperar é uma conversa formal, diplomática, de um líder de Estado (Lula) que se prontificou a dialogar com todas as partes, que não dispensa uma postura de neutralidade e ao mesmo tempo de escuta. Para mim é uma continuidade do que vem sendo feito desde janeiro (quando Lula tomou posse), mais um passo desse processo de negociação”.
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Paulo Velasco acha que Zelensky vai sair “frustrado” dessa conversa. “Se havia alguma dúvida, o discurso do Lula tirou qualquer dúvida. A essa altura, ele não deve esperar nada do Brasil”. O professor da UERJ se refere ao fato de Lula sequer ter citado nominalmente a Rússia e tê-la criticado da mesma forma como criticou todo o Conselho de Segurança.
“O Brasil tem tentado convencer as partes de que sua tradição diplomática é não abraçar nenhum dos dois lados. É o mesmo com Israel-Palestina. Existe ali claramente um invasor, mas nem por isso o Brasil rompe com Israel. O Brasil entende que manter a equidistância é o caminho para ser mediador. Talvez o Lula consiga convencer o Zelensky de que o Brasil é isso, e que isso não significa defender a Rússia”, pondera Velasco, num esforço para vislumbrar algum entendimento entre os dois presidentes no encontro desta quarta.
Reforma do Conselho de Segurança
Joe Biden mostrou postura decidida na defesa de uma antiga reivindicação do Brasil, que é a ampliação do Conselho de Segurança da ONU. Prometeu fazer sua parte para isso acontecer e declarou: “Precisamos de mais vozes, mais perspectivas na mesa”.
Mas Velasco acha que essa postura “vai até a página 2, porque na hora de aprovar, ele não aprova”. Ele acha que o Brasil tem dificuldade para impactar de fato nesse tema, porque “nossa projeção de poder é muito limitada” e, assim, o discurso acaba caindo no vazio. “O multilateralimso não é um capricho, é uma necessidade para o Brasil, porque daí a incidência repercute muito mais”, diz ele. Daí a importância do Brics para o Brasil.
Edição: Thales Schmidt