A conexão entre terceirização e escravização de pessoas não é mera opinião, mas fato comprovado
Por Ana Paula Alvarenga*
Opinião todos têm, diz parte de um conhecido ditado popular. Mas a liberdade de expressar opinião não isenta o opinante da responsabilidade pelo que expressa na esfera pública ou privada. A liberdade de expressão, direito fundamental garantido na Carta Constitucional, em seu artigo 5º, incisos IV e IX; valor supremo do Estado Democrático de Direito, essencial na construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, não autoriza o transbordamento ético e o exercício desvirtuado sem limites na responsabilidade civil e/ou criminal.
Neste contexto, a liberdade de opinião, de manifestação do pensamento e sobretudo, a livre expressão da atividade intelectual, independentemente de cesura ou licença, estão subordinadas, primeiro e antes de tudo, a princípios éticos, dentre os quais, releva destacar, no tema que este artigo se propõe a discorrer, o princípio da honestidade intelectual.
O conhecimento científico é produzido a partir de um conjunto de análises racionais, fundadas em métodos sistemáticos e verificáveis, não comportando mera opinião ou suposições sem respaldo em qualquer estudo ou pesquisa sobre o tema a qual se refere. Conhecimento científico é conhecimento provado e valendo da lição de Alfonso Trujillo Ferrari (Metodologia da Ciência, 1974): "ciência é uma sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar. A ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades racionais, dirigidas ao sistemático conhecimento com objeto limitado, capaz de ser submetido à verificação".
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Assim, no campo da liberdade de expressão reside o princípio ético da honestidade intelectual, que exige que aqueles que se propõem a discorrer sobre determinado tema passível de comprovação científica, o façam com observância de métodos próprios e racionais e conclusões devidamente demonstradas por fatos e dados da realidade enfocada.
Recentemente, em artigo publicado em portal dedicado a temas do mundo jurídico, um articulista afirmou que não passa de uma falsa narrativa afirmar que a terceirização é a grande culpada pela escravização de pessoas no Brasil. Afirmou mais: que em razão do reconhecimento da constitucionalidade da previsão normativa da terceirização pelo Supremo Tribunal Federal e da amplitude concedida ao instituto pela Reforma Trabalhista de 2017, houve ampliação da proteção aos trabalhadores terceirizados. O artigo publicado revela a desonestidade intelectual do autor, na medida em que faz afirmações não amparadas em comprovações científicas, sem respaldo em dados da realidade fática do mercado de trabalho brasileiro, e contrariando diversos estudos acadêmicos sobre o tema. Na verdade revela mera opinião equivocada sobre temas de profunda relevância para a sociedade brasileira.
Oportuno observar que mesmo o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a licitude da terceirização, não se furtou a afirmar que o exercício abusivo da contratação por meio da terceirização pode produzir a precarização do trabalho, a violação da dignidade do trabalhador ou o desrespeito a direitos previdenciários, e que para evitar tal exercício abusivo, os princípios que amparam a constitucionalidade da terceirização, segundo a mais alta corte do país, devem ser compatibilizados com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias (art. 31 da Lei 8.212/1993).
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É certo que não se pode afirmar, sob pena de incidir em simplificações, que a terceirização é a causa da escravização de pessoas no Brasil. Esta abjeta e ainda persistente prática social, que no Brasil remonta ao seu passado colonial, tem causas muito mais profundas e complexas que apenas a possibilidade legal da terceirização de serviços. Contudo, afirmar que não existe relação entre terceirização, cujas possibilidades foram ampliadas pela reforma trabalhista, e a precarização das relações de trabalho no Brasil, que têm na escravização sua forma mais cruel, padece de qualquer respaldo científico e contraria as conclusões de diversos estudos acadêmicos. Estudos que, a partir de métodos e técnicas de pesquisa para a análise de dados do mercado de trabalho brasileiro, concluem em sentido diametralmente oposto.
Há pouco mais de dois meses, em artigo intitulado O STF, a terceirização e a perversa conexão com a escravização no Brasil, publicado no Brasil de Fato, pretendeu-se apontar, ainda que singelamente, a relação direta entre a terceirização e a escravização de pessoas.
Como já exposto naquele artigo, mas sempre importante reiterar, o Brasil foi o último país da América a abolir a escravização, em 1888. Contudo, essa tal liberdade concedida às mulheres e aos homens escravizados não foi acompanhada da implementação de qualquer política pública de inserção social, deixando-os à margem da sociedade, aprisionados sob o signo da exclusão e da miséria, sem acesso ao mercado de trabalho, à educação, à saúde e à terra. Mesmo com as diversas transformações sociais trazidas pelo processo de industrialização e urbanização do país no século XX as desigualdades e as estruturas de poder originárias desse modelo de colonização permaneceram. E ainda se fazem presentes na realidade social brasileira, influenciando a distribuição de recursos, a concentração de riqueza, as disparidades sociais, a precariedade laboral e persistente escravização de pessoas em pleno século 21, mais de 130 anos depois da abolição formal da escravização.
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No contexto contemporâneo, somam-se às heranças coloniais, – ainda estruturantes da nossa sociedade –, os novos modelos de contratação e gestão de mão de obra engendrados para atender uma demanda crescente do capitalismo global pela redução dos custos de produção. A terceirização se insere neste contexto. Conforme bem observado por Biavaschi, Teixeira e Droppa, em 2021, "o amplo processo de reestruturação do capital forjou seus espaços, impactando no trabalho e na organização dos trabalhadores. Os temas do custo do trabalho e da insegurança jurídica passaram a ser fortemente invocados para sustentar, por exemplo, que a política de crescimento salarial é incompatível com a retomada da atividade econômica e do emprego. No bojo desse processo, em que as estruturas organizacionais são enxugadas nos mercados interno e externo, a terceirização consolidou-se como estratégia de redução de custos e de busca de lucratividade."
É fato de que a terceirização atende a lógica capitalista de gestão de mão de obra pelo menor custo e, segundo Vitor Filgueiras, "aqueles que fazem apologia à terceirização invariavelmente afirmam sua suposta inexorabilidade. Não são conhecidos argumentos com evidências sobre consequências positivas para os trabalhadores. Quando muito, se faz menção a uma suposta geração de empregos, em que pese essa alegação não ter coerência, mesmo do ponto de vista lógico. Todos os postos de trabalho terceirizados, por definição, são demandados pelos tomadores de serviços. A terceirização, per si, não cria nenhum emprego. Se a terceirização fosse extinta hoje a única consequência em termos de emprego seria a formalização de todos os contratos com os tomadores de serviço. A rigor, pelo contrário, a terceirização diminui o número de empregos, pois há evidências de que os terceirizados têm jornada mais longa que os empregados contratados diretamente." (Terceirização e Trabalho Análogo aos Escravo: Estreita Relação na Ofensiva do Capital. In Precarização e terceirização: faces da mesma realidade/ Org. Marilane Oliveira Teixeira, Hélio Rodrigues e Elaine d’Ávila. São Paulo, 2016).”
Muitos são as pesquisas acadêmicas, artigos científicos, dissertações e teses que se debruçam sobre o tema e demonstram que a terceirização promove a fragmentação das bases sindicais, pulverizando a representação dos trabalhadores em um sistema sindical no qual a representatividade é estabelecida pela categoria econômica, fragilizando os sindicatos e estendendo seus efeitos deletérios ao conjunto dos trabalhadores brasileiros. Outros tantos estudos, comprovam que a terceirização ampla e irrestrita promove a redução de direitos, aprofunda as desigualdades entre as condições de trabalho a que estão sujeitos os trabalhadores terceirizados e aqueles com vínculo direto com as empresas tomadoras de serviços, determinando vínculos mais instáveis, menores salários e mais acidentes laborais. E muitos outros indicam a relação entre a terceirização e a escravização de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.
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Apenas para indicar um dado estatístico recente apurado pelo Departamento de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Trabalho e Emprego, nos últimos anos no Brasil, considerados os maiores resgates de trabalhadoras e trabalhadores escravizados, 90% eram terceirizados e não por acaso. A terceirização, em regra, reduz a proteção social dos trabalhadores, mecanismo fundamental para um progresso mais amplo contra o trabalho forçado. O Relatório de Estimativa Global sobre a Escravidão Moderna da Organização Internacional do Trabalho – OIT expressamente indica que proteção social é o principal meio de mitigar os problemas socioeconômicos e a vulnerabilidade que sustenta grande parte do trabalho forçado.
A perversa conexão entre terceirização e escravização de pessoas não é mera opinião, muito menos uma narrativa falsa. É um fato comprovado por muitas pesquisas científicas sobre o tema, com conclusões comprovadas pelos dados oficiais do mercado de trabalho brasileiro. Afirmar o contrário não é apenas desonestidade intelectual, no sentido exposto neste breve artigo, é prestar um desserviço, por meio da desinformação, à árdua tarefa de prevenção e combate à forma mais brutal, cruel e desumana de exploração de trabalhadoras e trabalhadores e que mantém o Brasil do tempo presente ainda com usos do passado.
* Ana Paula Alvarenga Martins é juíza do Trabalho do TRT 15, mestranda em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.
Edição: Thalita Pires