No dia 30 de agosto de 2023, o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), citou em seu voto a favor da tese do marco temporal vários nomes de indigenistas brasileiros e suas obras a fim de fundamentar-se teoricamente. A tese do marco temporal está em discussão no STF e, se passar, irá inviabilizar a demarcação de terras indígenas por todo o país, além de permitir a revisão de terras já demarcadas.
Entre os antropólogos citados pelo ministro “terrivelmente evangélico” estão Darcy Ribeiro e Berta G. Ribeiro. O casal de antropólogos, que foram casados por 25 anos, dedicou sua vida e obra à defesa dos povos indígenas brasileiros e são citados equivocadamente pelo ministro que claramente demonstra desconhecimento sobre a teoria de Darcy Ribeiro e os estudos de Berta G. Ribeiro sobre os povos indígenas do alto e médio Xingu e do Alto Rio Negro.
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O ministro André Mendonça cita a definição de “índio” dada por Darcy Ribeiro, na década de 1950, baseada na definição elaborada pelos participantes do 2º Congresso Indigenista Interamericano, que aconteceu no Peru, em 1949, e que foi criado para discutir políticas para zelar pelos direitos dos povos indígenas na América.
É preciso lembrar que o termo “índio” vem sendo abandonado pelo movimento indígena e seus apoiadores, devido à sua carga pejorativa e generalizante. Adota-se atualmente o termo “indígena”, que compreende a diversidade dos povos originários brasileiros. Portanto, o conceito citado junto ao nome de Darcy Ribeiro é datado do início do século passado e já não atende mais aos debates do indigenismo contemporâneo, sendo equivocadamente utilizado pelo ministro.
Darcy Ribeiro foi antropólogo, indigenista, político e educador. Um dos protagonistas na demarcação da primeira terra indígena do Brasil, o Parque Indígena do Xingu, em 1961. Ao lado de Orlando e Claudio Villas Bôas, do Doutor Noel Nutel e do antropólogo Eduardo Galvão. Foi um dos fundadores do Museu do Índio no Rio de Janeiro ao lado de Mal. Cândido Rondon, em 1953; além de ter sido funcionário do antigo Serviço de Proteção aos Índios, na década de 1940. Sempre defendeu os direitos dos povos indígenas e a demarcação de suas terras.
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O ministro André Mendonça cita também a obra “O Índio na História do Brasil”, da antropóloga – e não historiadora, como a cita, talvez por desconhecer a trajetória e obra – Berta Gleiser Ribeiro, publicada pela primeira vez em 1983. O livro se trata, como escreveu Berta na Introdução, “de uma tentativa de expor ao público mais amplo – principalmente professores de segundo grau – a trágica história do primitivo habitante do Brasil e de sua marginalização progressiva, histórica, geográfica e cultural”.
Berta ainda escreveu: “Este livrinho é apenas um convite para meditar sobre a questão indígena. É sobre a dívida que o povo brasileiro tem para com os povos que aqui viveram há milênios antes da chegada do branco. É preciso saldá-la, antes que seja tarde.”
Portanto, trata-se de uma obra de divulgação científica da Etnologia e Antropologia brasileiras para alunos e professores do Ensino Médio, na década de 1980, há 40 anos. O livro, que é anterior à data sugerida para o marco temporal, possui conceitos e expressões que já foram revisados pela Antropologia e pelo movimento indígena, mas, apesar de obra datada, é clara sua contribuição a favor dos povos indígenas brasileiros, bem como seus objetivos contrários aos do voto do ministro, que, ao apostar no marco temporal, ignora a história, a existência e a luta dos povos indígenas brasileiros anteriores à Constituição de 1988.
Ao apresentar um panorama das terras ocupadas pelos povos indígenas que o português encontrou ao chegar ao que viria a ser o Brasil, Berta está compilando “fontes secundárias sem pretensões interpretativas ou teóricas”, como assinala a autora no livro.
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Quem foi Berta G. Ribeiro
Berta foi uma antropóloga, etnóloga, pesquisadora e escritora que dedicou sua vida aos indígenas brasileiros. Era uma militante apaixonada da causa indígena. Acreditava no uso social da tecnologia indígena para uma vida mais sustentável, defendia a preservação dos saberes indígenas, de sua cultura e suas terras.
Concluiu “O Índio na História do Brasil” dizendo que “a lição que as comunidades tribais podem dar, hoje, à humanidade é de caráter ecológico e social. Em primeiro lugar, o seu respeito à integridade da natureza, como fonte de todas as benesses da terra. Em segundo lugar, a democratização das relações humanas e da propriedade, que, tendo ocorrido até agora apenas no âmbito estreito das microetnias, possa, amanhã, tornar-se realidade para todos os povos”. Ou seja, Berta era a favor da demarcação das terras indígenas. Sua obra é citada descontextualizada e de forma leviana pelo Ministro André Mendonça.
Se estivesse viva, perto de completar 100 anos em 2024 (Berta faleceu nove meses após a morte de Darcy Ribeiro, em 1997, acometida por um câncer cerebral), estaria provavelmente ofendida por ter um trabalho tão primoroso citado para justificar um voto contra os direitos dos povos indígenas brasileiros aos quais amava e dedicou sua vida e obra.
Darcy é o autor da célebre frase: "Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca". Se estivesse vivo, estaria indignado com a citação de seu nome e de Berta Ribeiro para justificar um voto anti-indígena.
*Bianca Luiza Freire de Castro França é historiadora e doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde defendeu a tese de doutorado “'Uma civilização vegetal': a contribuição de Berta G. Ribeiro para a antropologia brasileira no século XX".
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas