Na noite de 10 de setembro de 1973, o Brasil tinha um jogo marcado com o Chile no Estádio Nacional de Santiago. A Junta Militar chilena já estava tramando os detalhes finais para, na manhã seguinte, derrubar Salvador Allende e seu projeto de socialismo democrático. Mas como o show não pode parar — e como quem está armando um golpe de Estado prefere que ninguém desconfie, por razões óbvias — o jogo é realizado normalmente.
No mesmo estádio onde Garrincha entortara adversários na conquista do bicampeonato mundial, em 1962, o Brasil — com um time formado apenas por jogadores de equipes do interior do Rio Grande do Sul — perde por 5 a 0. Àquela altura, o comandante das Forças Armadas, Augusto Pinochet, já havia assumido o comando do golpe de Estado, tomado o juramento de silêncio de todos os generais aliados, ordenado o cerco do Palácio La Moneda por tanques naquela madrugada e determinado o aquartelamento de todas as tropas.
Alheios a tudo isso, os jogadores chegam ao hotel, jantam e acham que vão poder repousar tranquilamente em suas camas. Só que não. Recebem uma ordem “do além” para, junto aos demais hóspedes, se encaminharem para o subsolo, onde funciona a lavanderia*. O motivo dessa noite tão atípica, eles entenderiam em breve, é o fato de o hotel ficar numa das laterais da Plaza Constitución, ou seja, bem perto do Palácio de La Moneda, que em breve seria bombardeado, invadido e se tornaria palco de um dos episódios mais trágicos da nossa história política.
Quando o dia 11 amanhece, os fuzileiros navais ocupam a costa de Valparaíso, a 100 quilômetros de Santiago, e cortam as comunicações da cidade com o resto do país. Pouco antes das 8h, Allende informa à população sobre o levante e pede aos trabalhadores que mantenham a serenidade e se dirijam para seus locais de trabalho.
É o que faz a brasileira Vera Thimoteo. Sai de casa de manhã cedo e vai para o Comitê de Indústrias Têxteis, órgão ligado à Corfo, a agência que administrava empresas estatizadas — estatizar corporações, assim como recursos naturais, foi uma das marcas da gestão Allende. Quando chega lá, nota um ambiente estranho. Passa pelo La Moneda e vê um tanque na frente do palácio. Quase ninguém nas ruas. No Café Brasil, espécie de grande botequim onde as pessoas paravam para tomar um café antes de trabalhar, o balcão está às moscas.
“Está acontecendo alguma coisa”, pensa Vera. No trabalho, ela não encontra dirigente algum, apenas uma secretária. As rádios estão cortadas, então não há informação. Aviões começam a dar rasantes sobre o palácio. Aumenta o número de tanques, chega um pelotão de infantaria. “Até que ligamos para a Corfo e mandaram a gente ir pra lá”.
As rádios favoráveis a Allende estão de fato silenciadas, mas outras emissoras transmitem comunicados dos golpistas. Anunciam a formação de uma junta composta pelos comandantes das três Forças e exigem a renúncia do presidente.
Allende foi um revolucionário. Quis acabar com o capitalismo no Chile e impor uma economia socialista, mas pelas urnas, o caminho que os chilenos chamavam de “revolução a empanadas e vinho tinto”, dois itens obrigatórios na mesa da família chilena.
A primeira parte do projeto, Allende e sua coligação de esquerda UP (Unidade Popular) puseram em prática, ao vencer a eleição e provocar grande comoção, a ponto de ter desencadeado manifestações que reuniram 1 milhão de chilenos — numa época em que a população era de 9 milhões. Na teoria, o presidente tinha grande poder. Mas na prática, sem maioria no Congresso, tentou implementar sua agenda reformista por meio de decretos, leis e intervenções. A oposição foi ferrenha, por meio de bloqueio de sua agenda legislativa, acusações constitucionais contra ministros e até uma tentativa de golpe fracassada, tudo com apoio de boa parte do empresariado e de governos como dos Estados Unidos e Brasil, entre outros.
“Era visível que a coisa não ia se aguentar”, disse certa vez Fernando Henrique Cardoso, um dos tantos brasileiros que se exilaram no Chile durante a ditadura daqui (1964-1984). Para o ex-presidente, Allende e sua equipe não viam Pinochet como principal adversário. Tanto que, dias antes do 11 de setembro, Allende confidencia ao general golpista sua intenção de convocar um referendo sobre uma reforma constitucional, por achar que a Constituição da época — promulgada em 1925 — atrapalhava o caminho ao socialismo.
Pinochet espalha essa informação entre a cúpula das Forças Armadas e o resultado é o que se vê nas ruas e se ouve nas rádios naquela manhã fatídica. “As Forças Armadas foram obrigadas a destituir o governo que estava levando o Chile a se tornar um satélite soviético”, dizia uma transmissão radiofônica segundo a lembrança do músico Raul Ellwanger, outro brasileiro que foi tentar ser feliz num lugar onde ser de esquerda, usar barba e ter em casa uma coleção de livros do Mao Tse Tung não era crime. “Se encontrar um terrorista, denuncie”, dizia a rádio, para em seguida enfatizar que cubanos e brasileiros estavam entre os subversivos mais desejados, e citar nominalmente nomes de brasileiros conhecidos.
O nome da jornalista Flavia Cavalcanti não é citado publicamente. Mas, por precaução, após tomar conhecimento do que se passava no La Moneda e perceber que o golpe se aproxima, ela resolve sair de casa junto do namorado, Tom Thimoteo. Eles até começam a queimar materiais impressos comprometedores, mas resolvem deixá-los para trás e apressar o passo. “Eu fumava muito, então peguei vários pacotes de cigarro, perfume… O Tom pegou passaportes, dólares. Pegamos nossa melhor roupa, um casaco, que fazia frio, e saímos à deriva. Fomos ao centro ver o que acontecia. Passamos na casa de uns amigos, estava cheia de gente queimando papéis”.
O discurso derradeiro
Allende faz seu último discurso às 10h10, pela única rádio ainda fiel ao governo e que ainda conseguia transmitir, já que os golpistas apontaram sua munição para todas as rádios não alinhadas.
Um discurso “maravilhoso”, diz Vera Thimoteo na entrevista ao Brasil de Fato por videoconferência. “Ele falou que os não patriotas estavam tentando derrubar a democracia, mas que o povo chileno ia resistir como sempre contra as injustiças. E terminou dizendo que mais cedo ou mais tarde, as alamedas voltariam a florescer e o povo venceria”. Pela tela do computador, dá para ver uma ou outra lágrima discreta se anunciando sob seus olhos. “Toda vez que lembro, fico emocionada”.
“Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”, são as palavras finais do revolucionário que não arreda pé do palácio mesmo sabendo que a casa vai cair.
Naquele dia, lamentavelmente, o que se vê nas alamedas e ruas de Santiago são sinais de perigo. Franco-atiradores dos golpistas e da resistência estão posicionados em pontos estratégicos. Mesmo assim, como o trajeto até a Corfo é curto, Vera decide ir a pé. “Fui me esgueirando pra evitar os tiros”, lembra. “A situação era de guerra. Os militares sabiam que o golpe tinha de ser muito violento, porque senão haveria resistência”.
Chegando lá, ninguém sabe o que fazer. Passado algum tempo, por orientação da direção do Partido Socialista, Vera entra num carro que segue para um local onde os partidários devem se abrigar. Quando chegam numa esquina, ela vê policiais e pede ao motorista que não entre naquela rua. “Mas havia uma coisa dos chilenos de achar que o Exército era constitucionalista e não aconteceria esse tipo de coisa. Até porque, na tentativa de golpe em julho (dois meses antes), o general (Carlos) Prats (então comandante das Forças Armadas, que se exilou na Argentina após a derrubada de Allende) abafou o golpe”.
Durante seu mandato presidencial, numa conversa com Fidel Castro, Allende afirmou que as Forças Armadas chilenas eram tradicionalmente neutras e não se intrometiam em política. Fidel disse que isso poderia mudar no dia em que fossem contrariados os interesses da classe à qual a hierarquia militar pertence, escreveu certa vez Max Altman no Opera Mundi.
“Mas eu sou estrangeira. Pra que vamos correr o risco?”, insiste Vera. Dito e feito. O carro é parado, todo mundo revistado e a polícia descobre armas no porta-malas. “Logo que entramos na delegacia, os caras de lá estavam em pânico, não sabiam o que fazer. Apareceu um oficial histérico, fascista, dizendo que eu ia ser fuzilada por causa de porte de arma. Engatilhou o fuzil dele, mas alguém o chamou e ele sossegou. Daí fui ser interrogada pelo comandante do comissariado. Vi uma pilha de carteirinhas do Partido Socialista. Contei uma novela triste, ele meio que acreditou, mas não funcionou porque eu estava com os outros caras. Passei o dia todo lá. Escutei os bombardeios no palácio”.
Ela escuta, mas não consegue ver. Já Raul Ellwanger vê, mas não escuta.
Ao acordar no dia 11, Raul passa na JAP (Junta de Abastecimento e Preço), onde as pessoas recebiam as cotas de comida que podiam comprar — racionamento severo, parte da sabotagem para derrubar o governo. Em seguida vai até a Universidade do Chile, onde era bolsista, “porque combinamos que se houvesse golpe, íamos resistir”. Chega lá, não encontra sua turma. Entre na ‘liebre’ (lotação) e volta para casa, pensando: “Como vou queimar minha coleção do Mao?”.
Da janela da cozinha
Ao chegar, se depara com o vizinho de frente de dedo em riste, gesticulando de forma ameaçadora. Encontra também o forno entreaberto, porque o amigo que morava com ele, Roberto Metzger, havia colocado uma carne tão grande para assar que a porta sequer fechava. Acima do fogão, através de uma janela que dava vista para o centro da cidade, começam a aparecer os aviões que, aos poucos ela entende, estão a caminho do ato criminoso contra a democracia. “Eles entravam no quadro da nossa janela. Dava pra ver eles chegando no palácio e ‘picando’. Mas eu não escutava nada”.
Raul bate na porta de um vizinho de ultradireita, “mas super solidário”, e telefona para uma amiga, que pouco depois vai buscá-lo para abrigá-lo em sua casa. “A tradição democrática da classe média chilena era muito forte”, ele avalia, questionado sobre o gesto do vizinho de direita, de abrir a porta num momento de caça às bruxas como aquele para deixá-lo usar o telefone.
O bombardeio ao palácio tem início pouco depois das 11h. Foguetes são disparados contra o segundo andar, onde fica o gabinete presidencial. Duas horas depois, ciente de que os militares controlam o país, o presidente determina a rendição dos auxiliares que estão ali com ele, no prédio destruído. Quando os militares entram para se apossar do palácio, ouvem dois tiros. É Allende se suicidando com um fuzil que havia ganhado de presente de Fidel Castro.
Em seu périplo pela cidade em busca de lugares seguros onde se abrigar, Flavia Cavalcanti toma um ônibus no subúrbio em direção ao centro e repara que os passageiros, em sua maioria humildes, têm um semblante triste. “Me chamou atenção que todas as pessoas choravam. Pessoas muito simples, era impressionante”. Allende foi um líder popular.
No período distópico que se seguiu ao seu trágico fim, os registros oficiais contabilizam mais de 3 mil assassinados e desaparecidos (sendo que 1.162 seguem desaparecidos até hoje), quase 40 mil presos e torturados. Sem falar nos exilados, estimados em mais de 200 mil.
Pelo clima de guerra nas ruas, qualquer persona non grata para o regime ditatorial sabia que não era nada impossível entrar para uma estatística como essa. Num dado momento, Flávia encontra o namorado de Vera, que está em busca dela, sem notícias. E diz a ele: “Também não sei dela”. E assim permaneceriam por muitos dias.
Após aquele primeiro interrogatório, Vera passa a noite no comissariado de mulheres, sozinha numa cela. No dia seguinte, passa um caminhão do exército recolhendo os presos e lá vai ela. É um veículo descoberto, portanto vulnerável aos tiros que chegam de todos os lados, o tempo todo. “Os soldados tinham muito medo de levar tiro. Nós ficavámos deitados e eles apontando armas pra gente, porque diziam que se levassem tiros, atiravam na gente também”.
“Soldado chileno, a pessoa que estiver andando na rua após o toque de recolher, atire na cabeça. Não atire no corpo”, diz outra mensagem radiofônica segundo a privilegiada e, queremos crer, fidedigna memória de Raul. Só que, pela percepção dele, os encarregados de executar tais ordens não lidavam bem com elas. “Os soldadinhos também tinham medo”, diz ele. Muitos eram do interior, vinham de 3 mil km de distância, encontravam parentes em situação de terror. “Fora que muitos admiravam o socialismo, o Allende”.
Sem escapatória
O caminhão vulnerável leva Vera até o Ministério do Exército, onde, segundo ela, não houve interrogatório, só porrada mesmo. Questionada se também levou porrada, ela confidencia que, no caso dela, a agressão teve aqueles requintes de crueldade que os assediadores costumam reservar às detentas do sexo feminino. Quatro homens, uma mulher numa sala. “Eu não tive escapatória”.
Consumado o golpe, era preciso consolidar a tomada de poder. Um dos capítulos mais degradantes desse projeto foi a Caravana da Morte, uma caçada que percorreu várias cidades do país em busca de opositores para executá-los. Uma das vítimas mais lembradas é o jornalista Carlos Berger, membro do Partido Comunista, detido na cidade de Calama (norte) por se negar a suspender a transmissão na rádio em que trabalhava no dia do golpe.
Pinochet, falecido em 2006, foi processado e esteve em prisão domiciliar por este caso, o primeiro pelo qual precisou se apresentar à justiça chilena. Três meses atrás, o general reformado Santiago Sinclair, de 92 anos, foi condenado a 18 anos de prisão por sua participação na caravana.
Já os anônimos brasileiros que gentilmente contribuíram com seus relatos para esta reportagem puderam prosseguir normalmente a vida depois de escapar das garras da ditadura.
Raul Ellwanger, que era residente e tinha documentos chilenos, conseguiu no cartório um laissez passer, um documento que permitia circular livremente, com uma espécie de imunidade, por 24 horas. Aproveitou, cruzou a fronteira com a Argentina e se mandou. O que mais lamenta que os milicos destruíram em sua casa? “Meu violão”.
Flavia Cavalcanti, que tinha cidadania argentina, conseguiu asilo na embaixada da Argentina para ela e o companheiro Tom Thimoteo. Ela calcula que de 500 a 600 pessoas estavam abrigadas lá dentro quando entraram, dormindo num salão imenso, cheio de colchonetes dispostos lado a lado, onde encontraram muitos amigos, inclusive brasileiros e chilenos. Após 15 dias, conseguiram embarcar para Buenos Aires num avião. Tom, que tinha cidadania brasileira, casou com ela, em Buenos Aires, para poder ficar na Argentina.
Vera Thimoteo saiu do Estádio Nacional, onde ficou detida até o final de novembro, por meio do Comissariado das Nações Unidas ONU para refugiados políticos, para uma casa que ficou sob bandeira suíça. De lá foi para a Suíça, onde lhe concederam asilo, e onde finalmente pode rever o irmão Tom, que viajou até lá para encontrá-la. Conseguiu levar junto o namorado, o dirigente do Partido Socialista Germinal Arce.
“Vivemos quase três anos de um governo democrático, com a esperança de que era possível mudar as coisas, de forma pacífica, e de repente o golpe veio de maneira tão violenta, que matou toda essa esperança”, reflete Vera. “Mas tenho uma coisa muito forte com o Chile, um vínculo muito forte, e sempre me emociono muito com tudo que acontece por lá”.
No dia 12 de setembro de 1973, ou seja, no imediato dia seguinte ao golpe, tudo que até então andava em falta nas prateleiras dos mercados reapareceu, conta Raul. E pela rapidez com que o abastecimento voltou ao normal, ficou claro para ele que os produtos não haviam sido importados. Estamos sendo racionados mesmo, por comerciantes alinhados ao esquema de sabotagem que acabou minando o governo Allende até que sua situação ficou insustentável.
A utopia de uma sociedade melhor havia sido violentada e enterrada. A democracia havia sido bombardeada. Mas o importante é que agora as pessoas podiam comer e comprar tudo que desejavam. E a bola podia continuar rolando (menos no Estádio Nacional de Santiago, que viraria um grande campo de concentração de prisioneiros e violação de direitos humanos).
*História relatada por uma das fontes desta reportagem, Raul Ellwanger, e confirmada em reportagem do site Sul 21.
Edição: Thales Schmidt