LUCRO MAQUIADO

Americanas: acusado de fraude, ex-CEO diz que obedecia sócio bilionário e empresa rebate acusação

Gigante varejista entrou em recuperação judicial depois de admitir manipulação de contas e dívidas de R$ 43 bilhões

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |

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Carlos Alberto Sicupira e família (fortuna de R$ 41,3 bilhões), Jorge Paulo Lemann e família (74,9 bilhões) e Marcel Herrmann Telles (R$ 50,4 bilhões) - Divulgação

A crise das Americanas ganhou novos capítulos depois de Miguel Gutierrez, executivo que comandou a empresa por 20 anos, afirmar que o bilionário Carlos Alberto Sicupira estava ciente de todas as decisões estratégicas da varejista. Até então, Gutierrez e outros antigos diretores eram os principais acusados das fraudes contábeis que levaram a gigante do comércio nacional a pedir recuperação judicial e acumular dívidas de R$ 43 bilhões.

Gutierrez prestou em março um depoimento à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia que regula o funcionamento de empresas com ações vendidas na bolsa de valores. O conteúdo deste depoimento foi revelado nesta segunda-feira (11) pelo Uol. Nele, o executivo cita Sicupira, a quem chama de Beto.

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"O Beto era o meu chefe. E toda a interligação [minha com o conselho das Americanas era através do Beto. E o Beto saiu da chefia do conselho em 2020 – que foi um plano programado em 2019, ele ia sair para depois eu ir pro conselho novamente. Então, nesse período, meu contato com Beto sempre foi muito intenso", disse Gutierrez. "Eu tinha uma relação com o Beto de 20 anos de trabalho. Você cria, obviamente, uma proximidade."

Carlos Alberto Sicupira é o quinto brasileiro mais rico, segundo ranking divulgado pela revista Forbes no último dia 31. De acordo com a publicação, ele é dono de mais de R$ 41 bilhões. Isso, aliás, é quase R$ 1,5 bilhão a mais do que ele tinha no ano passado – crescimento de 3,6%, apesar da crise das Americanas, da qual ele é sócio desde os anos 1980.

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Nas Americanas e em outras empresas, Sicupira é parceiro de investimento de Jorge Paulo Lemann, segundo brasileiro mais rico, e de Marcel Herrmann Telles, quarto. Os três investidores fundaram a 3G Capital, que é dona da cervejaria Ambev e outras companhias.

Gutierrez também prestou depoimento por escrito à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a crise das Americanas na semana passada. Ele afirmou que Lemann e Telles também tinham conhecimento da situação contábil da empresa.

"A companhia tropeça na tentativa de proteger pessoas que teriam muito mais condições de ressarci-la pelos danos que diz ter sofrido", escreveu.

Nova linha

As falas de Gutierrez mudaram o panorama do caso. Isso porque a Americanas sempre acusou Gutierrez e antigos diretores das fraudes e blindou seus sócios bilionários.

Em junho, também à CPI, a empresa disse que sua contabilidade foi fraudada para que ela apresentasse lucros mais altos do que realmente obtinha. Informou também que a manipulação ocorreu por um "período significativo" e que somou R$ 45 bilhões.

Com mais lucro no papel, os diretores ganhavam em bonificações. Acionistas, entre eles o trio do 3G, também ganhavam mais em dividendos.

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Apesar desse ganho para Lemann, Telles e Sicupira, a Americanas nunca apontou que eles poderiam ter conhecimento das fraudes ou participação nelas. Isso, porém, levantou suspeitas de especialistas no mercado de capitais ainda naquela época.

O presidente da Associação Brasileira dos Investidores (Abradin), o economista Aurélio Valporto, foi um dos que achou a versão da Americanas inverossímil. "A impressão que ficou foi que a empresa procurou blindar o conselho de administração e os acionistas de referência", afirmou ele, ao Brasil de Fato, em junho.

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O economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também duvidou das explicações das Americanas.

“A assessoria jurídica contratada tenta nitidamente blindar os acionistas controladores: o trio Lemann, Telles e Sicupira", afirmou.

Bancos atacam

Na mesma semana em que o ex-presidente da Americanas prestou depoimento, o Bradesco, que tem R$ 4 bilhões a receber da varejista, encaminhou à Justiça uma petição com a carta de Gutierrez em anexo. No processo, o Bradesco pede a produção antecipada de provas sobre a crise na empresa para esclarecer as responsabilidades sobre ela.

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O trio de bilionários, aliás, já envolveu-se em suspeitas de fraudes muito parecidas com as constatadas agora nas Americanas. O banco BTG Pactual, outro credor, lembrou esses casos ao recorrer à Justiça para bloquear cerca de R$ 1 bilhão da companhia ainda em janeiro.

"Em 2005, foram acusados de terem atuado com abuso de poder de controle, ao desvirtuar os objetivos do plano de opção de compra de ações da Ambev", narrou o BTG. "Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, também foram acusados, na qualidade de administradores da Ambev, de terem infringido seus deveres fiduciários com a companhia."

O caso foi tema de um processo da CVM. Foi encerrado após um acordo que envolveu o pagamento de R$ 15 milhões.

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O BTG relatou também o caso da Kraft Heinz, empresa que fabrica o famoso ketchup e que também já foi controlada pela Lemann. Em 2019, ela também teria admitido inconsistências de US$ 15 bilhões (mais de R$ 72 bilhões) em seu balanço (cerca de R$ 75 bilhões na cotação atual). Pagou uma multa de US$ 62 milhões (mais de R$ 310 milhões) ao governo dos EUA para encerrar um processo que corria por lá.

Americanas rebate

A Americanas rebateu as acusações de Gutierrez. Disse que ela conta mentiras para eximir sua "responsabilidade e relação direta com a fraude de resultados identificada".

A empresa explicou também que nem todas as ações da antiga direção das Americanas eram submetidas para aprovação a qualquer acionista ou membro do Conselho de Administração. "Como em qualquer companhia aberta e nos termos da legislação aplicável, decisões operacionais e do dia a dia das Americanas cabiam exclusivamente à diretoria, liderada pelo senhor Miguel por 20 anos", acrescentou.

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Sobre a ação do Bradesco, a Americanas disse que o banco tenta "pegar carona" nas teses de Gutierrez para tirar proveito disso.

Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles informaram via sua assessoria que perderam R$ 1,6 bilhão com as Americanas ao longo de dez anos. Investiram R$ 2,3 bilhões e receberam 700 milhões.

Disseram confiar nas autoridades para esclarecer a culpa sobre a fraude. Declararam também estar comprometidos com a recuperação da empresa.

Edição: Thalita Pires