Há exatos 50 anos o Chile vivia o mais cinematográfico dos golpes de Estado que espalharam sangrentas ditaduras militares pela América Latina nos anos 1960 e 1970. Quando, em 11 de setembro de 1973, o bombardeio aéreo do palácio de la Moneda pôs fim à vida e ao governo do então presidente Salvador Allende, a ativista chilena Gloria Elgueta tinha 17 anos. Passaria os próximos 17 sob o regime de Pinochet.
Naquele dia, quando acordou para ir à universidade, Gloria ouviu seu irmão Martín: "levanta, aconteceu o golpe de Estado". Em seguida, a campainha tocou. Era a polícia. "Minha família era sabidamente de esquerda e, segundo os policiais, vizinhos teriam denunciado a existência de armas na nossa casa. Armas que nunca tivemos", relata.
"Não me lembro de ter chorado naqueles momentos. A sensação inicial foi mais de incerteza, embora muitos de nós pensássemos que seria um período de exceção breve. Ainda não sabíamos dos propósitos refundacionais da conspiração de militares, policiais, grandes empresários e aliados do governo estadunidense por meio da CIA", narra. "Em seguida, veio a incredulidade e o choque diante da brutal repressão e agressividade do novo regime. Foram meses para começar a pensar: e agora? O que fazer?".
Neste setembro de 2023, com o debate público sobre a ditadura intensificado pelo marco do meio século do golpe e por um plano de busca dos desaparecidos recém anunciado pelo governo Boric, o Chile vive um momento político acalorado.
Depois de massivas manifestações em 2019 e um plebiscito que rechaçou uma proposta progressista de Constituição em 2022, a elaboração da nova Carta Magna chilena está agora majoritariamente nas mãos de políticos da direita. Sem ter dado respostas às demandas das mobilizações pela redução das desigualdades sociais, avalia Gloria, o clima do país é de uma “panela de pressão” prestes a estourar.
No centro de Santiago, na rua Londres, 38 – endereço que também dá nome ao grupo que integra – Elgueta recebeu e conversou sobre esses temas com o Brasil de Fato. Hoje transformado em museu e Espaço de Memória pelo coletivo homônimo, o casarão foi o primeiro centro de detenção e tortura da Direção de Inteligência Nacional (Dina) da ditadura chilena.
Gloria era adolescente quando se somou às fileiras do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Se afastou da organização por um curto período e voltou em 1974, um dos anos mais repressivos do regime. Ao longo dos anos, atuou de forma pública e também clandestina na luta contra a ditadura.
Foi ali, na Londres 38, onde foram detidos e torturados seus dois irmãos, também militantes do MIR. Um deles, o estudante de engenharia Martín Elgueta Pinto, preso aos 21 anos, nunca mais apareceu. Assim como ele, outras 1.468 pessoas foram sequestradas e desaparecidas pelas forças de segurança ditatoriais entre 1973 e 1990. Até o momento, foram reveladas informações (nem todas completas) sobre o paradeiro de apenas 307 delas.
MIR
Logo que o regime militar se instalou, o desaparecimento forçado teve o MIR como um de seus alvos principais. Entre maio de 1974 e fevereiro de 1975, 40% dos militantes do MIR que estavam em Santiago foram "desaparecidos" ou executados. Criado em 1965, o MIR foi a maior organização de esquerda chilena que não fez parte da Unidade Popular (UP), a coalizão que elegeu Allende em 1970.
Em contraposição à via institucional de Allende para “abrir caminhos para o socialismo”, como ele dizia em seus discursos, o MIR entendia que o acirramento dos conflitos de classe deveria levar a uma mobilização de massas insurrecional que não tinha que se limitar aos caminhos legalistas. Manifestando, no entanto, apoio crítico ao governo, os 'miristas' chegaram a fazer a segurança de Salvador Allende entre 1970 e 1971.
Em 1974 Gloria Elgueta se vinculou de novo ao movimento, atuando na organização de familiares de presos. Foi em 1978 que a inteligência da ditadura vinculou o seu nome e de outras pessoas do seu entorno ao MIR. Sob a manchete “perigosos extremistas fogem armados”, suas fotos saíram na imprensa. Passou, então, para a clandestinidade.
“Nesses anos o movimento estava começando a se reorganizar depois da feroz repressão que sofreu e, em primeiro lugar, a gente tentava se manter conectado. Ainda que pareça algo muito básico, era disso que se tratava. Estarmos conectados. Para quê? Para pensar o que fazer”, riu. “A política nesse momento era sobreviver, resistir e se organizar”, resume.
Com a perseguição cada vez mais perto e pessoas próximas sendo presas, Gloria e seu companheiro se exilaram em Cuba em 1979. Em menos de quatro anos, no entanto, resolveram voltar clandestinamente para o Chile, onde seguiram militando no MIR até a abertura democrática.
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“Não sei”, respondeu Gloria ao comentário sobre a coragem para voltar ao país nessas circunstâncias. “Não reconheço essas ideias de coragem ou covardia nessa experiência”, reflete. “Porque no fundo... é fazer o que você pode ou o que faz sentido para você. Nesse momento foi isso. Não é que tenha sido um arroubo de valentia. Ao contrário: sempre tive muito, muito medo”, relata.
Quando a ditadura terminou, Gloria tinha 34 anos. “O sentimento era tão diferente. De verdade, era como se sentir segura. Poder viver. Foi como começar de novo. Ver o que fazer, com o que trabalhar. Voltei a estudar”, conta Elgueta, licenciada e mestra em Filosofia.
O passado e as revoltas do presente
Quem hoje caminha pela rua Londres olhando para o chão, logo se depara com inscrições dos nomes das vítimas daquele centro de tortura nos paralelepípedos. “O projeto Londres 38 busca fazer memória não apenas na literalidade dos fatos, mas nos significados, nas consequências e efeitos que têm no presente”, explica Elgueta.
Logo na primeira sala do casarão, uma pequena panelinha de enfeite tem os dizeres “Panelaço - 18 de outubro de 2019 – a força da união em um som”. Faz referência às manifestações que tomaram o país entre 2019 e 2020, que tiveram a luta contra o aumento da tarifa do transporte como seu estopim e rapidamente ampliaram suas pautas e críticas ao então presidente Sebastián Piñera.
Referidas no Chile frequentemente como estallido social (explosão ou revolta social), as manifestações de outubro de 2019 vieram na esteira de um ciclo de protestos massivos na história recente do país. Em 2006, houve a chamada Revolta dos Pinguins, com os secundaristas. Em 2011, a mobilização dos estudantes universitários. Em 2016, os protestos contra o regime privado de aposentadoria.
A nova Constituição do Chile
A substituição da Constituição do Chile, vigente desde os tempos de Pinochet, foi a forma como a mais recente onda de mobilização foi canalizada. Há cerca de um ano, no entanto, o povo chileno rejeitou o texto elaborado por um organismo eleito por voto popular. A nova proposta – agora feita por maioria de representantes da direita – será avaliada em novo plebiscito em 17 de dezembro.
“A revolta de 2019 foi um cruzamento de raivas a respeito de injustiças”, descreve Gloria. “Às vezes se faz uma leitura de que foi uma expressão apenas de um pensamento ou prática de esquerda, e aí vem a rejeição no plebiscito como se fosse apenas uma expressão de direita, tampouco foi assim. A realidade é mais complexa”, avalia.
“Tem uma pesquisa mais recente que mostra que a recusa no plebiscito não indicava somente um rechaço ao que parecia ser uma constituição avançada. Mas que era também um rechaço aos setores dominantes da classe política. Porque o governo e grande parte da classe política se juntaram em torno da Constituição”, expõe Elgueta.
“Houve sim uma demanda pela constituinte porque existe a compreensão de que, em muitos casos, a Constituição vigente é um obstáculo para a satisfação de demandas sociais e políticas”, aponta a ativista do Londres 38. “Mas há outros problemas que poderiam ser resolvidos de forma mais imediata. São básicos. E que tem a ver, basicamente, com a desigualdade que existe em matéria de renda.”
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Ditadura e democracia: continuidade e polarização
De acordo com o relatório World Inequality de 2022, 1% das pessoas mais abastadas do Chile concentram 49,6% de toda a riqueza do país. Para a ex-militante do MIR, o cenário tem a ver com a continuidade entre o modelo econômico neoliberal implementado na gestão de Pinochet e os governos democráticos que o sucederam.
“Os setores dominantes durante a ditadura – o grande empresariado, as direitas, as Forças Armadas – conservaram grande parte do seu poder. Inclusive com respaldo social”, afirma Gloria Elgueta. “No Chile ninguém, ninguém mesmo, que tenha ocupado posições de poder durante a ditadura reconheceu e assumiu o que fez”, critica.
“Nesses 50 anos essa polarização cresce, mas é uma discussão que tem estado sempre”, ressalta. “O tema da disputa pela memória, a história e a verdade está muito além da questão das vítimas. Tem a ver com os sentidos, os significados que tem o golpe em si e a ditadura”.
“Há aqueles que tentam fazer uma distinção entre o golpe e as violações aos direitos humanos. Como se fosse possível separar. E como se o golpe se justificasse porque se não, se implementaria uma ditadura marxista”, narra Elgueta: “É uma contradição em termos. ‘A democracia está em perigo então eu a destruo completamente’”.
O medo das elites
“No Chile, a imensa maioria da população – cerca de 70% – não ganha o suficiente para viver no mês. E, portanto, se endivida. Então esse tema, o das aposentadorias que são miseráveis, vários outros, estavam nas ruas. E nada disso recebeu nenhuma satisfação”, afirma Gloria Elgueta.
Durante a revolta de 2019, diz ela, “a classe dominante se aterrorizou”. “A direita tem um trauma da Unidade Popular, tem um trauma de ter vivido o que significou um movimento popular poderoso. Estão até agora aterrorizados”, avalia Elgueta.
Para a ex-militante do MIR, isso explica o nível da violência repressiva aos atos por parte do goveno Piñera. Cerca de 360 pessoas foram atingidas nos olhos por bala de borracha. E também a defesa da legitimidade do golpe militar no marco dos 50 anos. “Acho que é algo que explica também. Esses medos históricos”, diz.
“No fundo, a revolta não encontrou resposta”, resume Elgueta. “Então o Chile é uma panela de pressão que está aí e que provavelmente vai estourar em algum momento.”
Edição: Rodrigo Chagas