A distância história e geográfica entre Chile e Venezuela não impede que o governo do ex-presidente socialista Salvador Allende seja uma das experiências mais reivindicadas pela esquerda venezuelana. Na semana em que a vitória da Unidade popular completa 53 anos e que o golpe de Estado que derrubou Allende completa 50 anos, a Venezuela inaugurou uma exposição sobre esses episódios decisivos para a história do Chile.
Intitulada "A história é nossa e a fazem os povos", a mostra foi realizada pelo Ministério de Relações Exteriores em parceria com a Embaixada do Chile no país e traz fotografias e documentos sobre distintas fases do governo Allende, desde a vitória eleitoral até a derrubada, no dia 11 de setembro de 1973.
O nome da exposição faz referência ao último discurso de Allende, transmitido pela rádio no dia do golpe momentos antes do Palácio La Moneda, sede do Executivo chileno, ser bombardeado pelas tropas golpistas comandadas pelo general Augusto Pinochet. O ato violento marcou o início de uma sangrenta ditadura que durou 17 anos e deixou milhares de exilados, mortos e desaparecidos políticos.
Daniel Retamal Muñoz, que na época do golpe era estudante de engenharia e militante do Partido Comunista, foi um dos chilenos que teve que deixar seu país por conta da perseguição política iniciada pela ditadura. Ao Brasil de Fato, ele conta que passou à clandestinidade no mesmo dia do golpe e em 1978 viajou à Venezuela, onde vive até hoje.
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"Nós sabíamos que o golpe fascista chegaria, mas nunca imaginamos como ele seria. Apesar de lermos muitos livros sobre o fascismo, assistido filmes sobre o fascismo, nunca imaginamos que ele seria implementado no Chile da forma como foi", diz.
Muñoz, que hoje preside a Fundação Venezuelana Pablo Neruda, foi um dos chilenos que se exilaram na Venezuela e que foram homenageados durante a inauguração da exposição. Ele conta que o trabalho clandestino contra o regime de Pinochet era ativo, mas que depois do desaparecimento de dirigentes comunistas em 1976, o cerco contra as atividades políticas opositoras se fechou ainda mais.
"Eu tive sorte, para dizer o mínimo, porque não perdi minha vida durante o golpe. Eu me salvei e isso me levou a cumprir com o que sempre nos dizia Allende de que apesar das derrotas, sempre se deve pensar que há uma possibilidade de vitória e estamos trabalhando para isso", afirma.
Via chilena e socialismo do século 21
Os laços históricos das experiências chilena e venezuelana também foram abordados pelo embaixador do Chile no país, Jaime Mujica. Recém-nomeado, após Santiago e Caracas passarem anos com relações rompidas por decisão do ex-presidente Sebastián Piñera, o diplomata afirmou que o governo socialista de Allende deixou um legado para as relações multilaterais na região.
"Considero que tem uma ressonância muito atual o conceito de Allende de que na América Latina não se devem estabelecer fronteiras ideológicas e que a cooperação e a integração entre países com governos de distintas filiações políticas e ideológicas são fundamentais", disse.
O chanceler venezuelano, Yván Gil, que também participou da inauguração, felicitou a presença da autoridade chilena por marcar um restabelecimento de relações e pediu união entre os países para "combater o neofascismo".
"O ressurgimento das forças fascistas começa a ser uma fonte de desestabilização de governos. Acho que é o momento para que nossos governos, para além dessas discussões ideológicos que pretendem nos impor, comecemos a transitar pela via da unidade para, justamente, nos protegermos dessas agressões", afirmou.
Durante a exposição, os participantes também chegaram a comparar a chegada de Allende à Presidência pela via eleitoral com a vitória do ex-presidente Hugo Chávez nas eleições de 1998, um debate recorrente entre os movimentos populares venezuelanos.
Para o historiador Eduardo Scheidt, professor da UERJ e pesquisador dos governos de Allende e Chávez, as duas experiências guardam semelhanças pois elas "seriam uma proposta de construção do socialismo pelas vias democráticas e institucionais".
"Tanto Allende quanto Chávez foram eleitos pelo voto popular e se propuseram a iniciar uma revolução mantendo a institucionalidade democrática e liberdades políticas (inclusive para os opositores) sem recorrer a insurreições ou guerras civis", afirma o professor.
Scheidt ainda lembra que "em ambos os casos, as propostas de socialismo não se apegavam a modelos ou cópias de experiências de outros países, pois eles defendiam que o socialismo deve ser construído a partir das realidades específicas de suas sociedades".
"Por essas razões, o projeto de Allende ficou conhecido como 'via chilena ao socialismo' e o 'socialismo do século 21' defendido por Chávez também era crítico das experiências socialistas do século 20 e nem mesmo consiste em algum modelo teórico acabado, ele defende que o socialismo deve ser 'inventado' pelas sociedades a partir de suas experiências e realidades históricas específicas", diz.
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O historiador também aponta algumas diferenças fundamentais dos processos, como o fato de Chávez ter origem militar, diferentemente de Allende, e de o ex-presidente venezuelano sair vitorioso de uma tentativa de golpe de Estado em 2002, que visava derrubá-lo do poder.
"Pode-se dizer que o retorno de Chávez em 2002 foi a vitória que Allende não teve em 1973, pois tanto Allende quanto Chávez enfrentaram forte oposição das classes dominantes nacionais, da maior parte das classes médias e do imperialismo norte-americano, mas os resultados diferentes se deram por inúmeras razões, a começar pelos contextos históricos distintos", afirma.
Edição: Thales Schmidt