A decisão sobre a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas está simultaneamente nas mãos de dois poderes da República: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. A Agência Pública entrevistou especialistas para entender o que ocorre caso a Corte e o parlamento encaminhem definições diferentes sobre o tema.
O movimento indígena e organizações indigenistas acreditam que o STF deve rejeitar o conceito jurídico, segundo o qual só devem ser reconhecidos pelo Estado territórios ocupados pelos indígenas em outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.
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A retomada do julgamento pelo tribunal foi marcada para esta quarta-feira (30), após o ministro André Mendonça devolver o processo na noite da última quinta-feira (24) – ele havia pedido vistas no dia 7 de junho. Por enquanto, são públicos três votos: os do relator Edson Fachin e de Alexandre de Moraes, contrários à tese, e o de Kassio Nunes Marques, favorável. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.
Já no Congresso, a expectativa é de que o projeto de lei que trata do assunto (PL 2.903/23) seja aprovado. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais, defende o marco temporal e articula para que o PL 2.903/23 seja votado antes da conclusão do julgamento no Supremo.
Na semana passada, a matéria passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal.
A etapa seguinte à CCJ é a votação do PL no plenário do Senado. Depois disso, se os senadores fizerem mudanças no texto, ele volta para a Câmara, que pode aceitá-las ou rejeitá-las, sem propor novos trechos ao projeto.
Concluída essa fase, a matéria será encaminhada para análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode sancionar ou vetar dispositivos do texto. Se houver vetos, eles serão examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Só ao fim desse processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.
O jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e especialista em direito constitucional, explica que, caso o marco temporal vire lei pelas mãos do Congresso antes da conclusão do julgamento no STF, a Corte pode seguir por dois caminhos.
“Pode dizer: não é mais comigo, porque já existe uma lei sobre isso”, afirma, destacando que essa decisão ficará a cargo do relator do processo, o ministro Edson Fachin. “Ou pode dizer: há uma lei fixando o marco temporal [para demarcação de terras indígenas] a partir de 5 de outubro de 1988, que era o que eu já estava discutindo, então vou apreciar a constitucionalidade daquilo que o Congresso definiu”.
De acordo com Lima, nesta última hipótese, o STF poderia aproveitar o julgamento atual para analisar a constitucionalidade da lei.
A advogada Ana Carolina Alfinito, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) e assessora jurídica da ONG Amazon Watch, reconhece a possibilidade de o STF decidir não mais se posicionar sobre o marco temporal caso seja instituída uma lei que determina a sua aplicação como critério para a demarcação de terras indígenas. No entanto, ela a considera pouco provável.
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“O relator está muito interessado que esse julgamento aconteça. A presidente [da Corte] Rosa Weber também quer pautar [a questão]. Isso se tornou, inclusive, um tema de debate dentro do STF”, pontua.
Alfinito avalia ainda que, com o voto de Alexandre de Moraes, proferido em 7 de junho, o STF tem a oportunidade de “fazer uma conciliação” em torno do marco temporal. O ministro rejeitou a tese, mas colocou duas novas propostas sobre a mesa: o pagamento de “indenização prévia” a proprietários de imóveis sobrepostos a terras indígenas; e a compensação por “territórios de interesse público”. Esta última situação prevê a possibilidade do Estado oferecer aos indígenas áreas alternativas àquelas que reivindicam.
Para a advogada, a indenização seria uma forma de apaziguar os dois lados. “O tribunal está numa posição confortável: é capaz de superar a tese inconstitucional do marco temporal e, ao mesmo tempo, agradar as forças políticas que o defendem”, argumenta.
Na visão de lideranças indígenas e especialistas, porém, o PL 2.903/23 traz uma série de outros ataques aos direitos indígenas que vão além do marco temporal.
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Entre outros pontos, o texto atual proíbe a ampliação de territórios já demarcados e permite que obras relacionadas à “política de defesa e soberania nacional” sejam realizadas sem consulta aos povos afetados (leia aqui reportagem da Pública sobre 10 itens polêmicos do PL).
Um parecer da consultoria jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) publicado neste mês concluiu que “diversos dispositivos” do projeto de lei são inconstitucionais.
Por causa desses vários pontos polêmicos, os especialistas ouvidos pela reportagem compreendem que, se a matéria for convertida em lei, será necessário o questionamento de sua constitucionalidade no STF.
Caso o Supremo conclua seu julgamento antes de o PL 2.903/23 ser votado pelo Congresso, a expectativa dos especialistas é que isso acabe interferindo na tramitação legislativa. “Se o STF decidir logo, certamente influenciará no texto em curso no Legislativo. Seria muito estranho o Legislativo afrontar o STF com um texto que colide com a decisão da Corte”, afirma Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, considera que a decisão trará repercussões à tramitação do projeto.