Combate à fome e apoio à produção de alimentos saudáveis, dois dos principais compromissos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entraram de vez no orçamento do governo federal há cerca de dois meses. No dia 20 de junho, o presidente lançou o Plano Safra da Agricultura Familiar 2023/2024, em cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília.
Presentes no evento, representantes dos principais movimentos populares ligados à agricultura familiar e camponesa do país comemoraram o pacote de investimentos, que totaliza R$ 77,7 bilhões. Ouvidos na elaboração do mais polpudo Plano Safra da história, alguns reforçam os avanços práticos e simbólicos das medidas, como a própria retomada do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), mas alertam que o percurso ainda é longo para chegar a uma nova política de alimentos.
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Para comentar os principais desafios e as metas para o campo sob a ótica dos trabalhadores e trabalhadoras, o Brasil de Fato convidou a agricultora familiar e educadora popular Vânia Marques, secretária de Políticas Sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag); a integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Ceres Hadich; e o dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Anderson Amaro.
Unânimes em ressaltar a importância dos investimentos, os três sabem as dimensões de barreiras impostas pelo contexto político pós-eleitoral, pela manutenção de uma taxa Selic elevada e por um Congresso Nacional bem mais interessado em defender os interesses do agronegócio. E também cobram políticas estruturantes de longo prazo, partindo das realidades particulares e das realidades de cada local e região.
“Avaliamos como muito positivos os sinais de que o governo está dando de que vai priorizar aspectos importantes da agricultura familiar, como a agroecologia e os quintais produtivos, que foi lançado na Marcha das Margaridas. Inclusive quando olhamos para o Plano Safra, conseguimos identificar todos os eixos que foram apresentados pela Contag ao MDA. A gente gostaria que os valores fossem maiores, os juros um pouco menores, mas compreendemos que esse momento político contribuiu para que tivéssemos esse plano”, comenta Vânia.
Constatação semelhante é a de Ceres Hadich, que também ressalta a importância dos pequenos agricultores familiares para a produção de alimentos saudáveis e, consequentemente, para o combate à fome e à insegurança alimentar. “Claro que temos expectativa de que as coisas possam avançar mais substancialmente, principalmente com projetos estruturantes, como é a reforma agrária, como é a retomada de outras políticas públicas estruturantes para o campo, que não estão infelizmente ainda contempladas no Plano Safra, mas esse primeiro passo é importante”, destaca.
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Alcance dos programas ainda é limitado
A maior fatia do bolo é destinada ao crédito rural – um montante de R$ 71,6 bilhões que deve chegar às famílias através de 77 bancos cadastrados junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Embora não tenha atingido a projeção inicial de R$ 75 bi, houve um aumento de 36% em relação ao plano anterior.
O Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) também reduziu a taxa de juros, de 5% para 4% ao ano para quem produz alimentos da cesta básica brasileira, como arroz, feijão, mandioca e leite. Para os agricultores familiares de baixa renda, o Pronaf B deixou de ser restrito ao Nordeste e também ampliou o microcrédito de R$ 6 mil para R$ 10 mil, e para mulheres agricultoras o valor chega a R$ 12 mil. Os valores para famílias que estão na linha da pobreza saltaram de R$ 2,4 mil para R$ 4,6 mil.
Embora as metas de acesso a créditos seja ambiciosa e inclua também condições especiais aos mais jovens, Anderson Amaro teme que as taxas não sejam vantajosas o bastante para competir com monoculturas ou com o cultivo livre de agrotóxicos e fertilizantes químicos. “Infelizmente, o Plano Safra ainda não vai chegar a boa parte das famílias empobrecidas no Brasil porque a taxa de juros, ainda que seja mais baixa que a taxa de juros normal, ainda não é interessante”, identifica.
“A soja, veja só, com um juros de 5% e o feijão com 4% é quase uma concorrência desleal, já que a soja é mais fácil de produzir, menos trabalhosa, com alto valor de mercado por ser muito mais competitiva. Por 1% de juros é muito mais tangível que você vá para a soja do que para o feijão, portanto não contribui para mais alimentos”, critica o dirigente do MPA, que diz ter defendido durante a elaboração do plano, sem êxito, que os empréstimos fossem oferecidos sem qualquer juros para produtos básicos da dieta brasileira, como arroz, feijão e mandioca.
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Criado em 1994 e consolidado em 1997, o Pronaf já foi utilizado em mais de 2,6 milhões de pequenas propriedades rurais no Brasil. Contudo, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no país cerca de 4 milhões de propriedades classificadas como de agricultura rural, cerca de 77% dos estabelecimentos rurais de todo o território. Portanto, ainda há uma lacuna preocupante de acesso ao crédito para uma população que produz cerca de 70% dos alimentos do país, ocupando apenas 23% das áreas agricultáveis.
Outra barreira relevante é a barreira que ainda existe para a assistência técnica e extensão rural. Segundo Vânia, 82% dos agricultores familiares não recebem nenhum tipo de suporte desse tipo e o valor previsto para este biênio é de R$ 200 milhões, o que ela considera insuficiente. “Esse valor não vai dar para aplicar em quem não tem nenhum tipo de assistência técnica. E nós sabemos o quanto isso é fundamental para que o agricultor ou agricultora consiga acessar os créditos. A gente avalia alguns pontos que precisam ser melhorados”, pontua.
Anderson Amaro, por sua vez, critica a forma genérica como a instrumentalização é tratada quando se trata de agricultura familiar. Ele acredita que as pesquisas nas últimas décadas avançaram exponencialmente, mas ainda não houve grandes esforços para atender às demandas específicas dos menores produtores para que tenham trabalhos menos árduos.
“Defendemos um maquinário adaptado para a agricultura familiar, porque tem máquinas que não vão se adequar à realidade camponesa. Aqui na Bahia a gente até falava: por que não ter uma máquina para tirar o coco babaçu? Então vamos incentivar nossas universidades a fazer pesquisas sobre isso”, solicita.
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Reversão do modelo produtivo no campo
Políticas de acesso à terra também foram anunciadas na ocasião e reforçadas durante a Marcha das Margaridas, em Brasília, no último dia 16. Nesse meio tempo, Lula também sancionou o projeto de lei que retoma o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O objetivo é dar segurança aos produtores, contribuir para o acesso à alimentação saudável e combater a insegurança alimentar.
“Todo mundo que tem a garantia de compra, o preço mínimo que depois foi lançado, dá segurança. O produtor vai produzir sabendo para quem vai ofertar e quem vai garantir a compra. Quando você faz isso, a pessoa produz com tranquilidade, sem receio de ficar refém do mercado, de colocar o seu produto abaixo do preço de produção. Isso nos garante um reinvestimento no setor da agricultura”, exalta Amaro.
Nesse sentido, ele também demanda urgência na reestruturação de um Plano Nacional de Abastecimento, para reverter um quadro em que estiveram fechados 34 galpões da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). “Não tem estoque público hoje, está sendo retomado agora pelo governo federal. Isso é de uma gravidade imensa, porque você tem uma situação de emergência e não tem suprimentos para socorrer essas emergências, para conseguir equilibrar o preço do arroz por exemplo”, afirma.
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O país possui atualmente cerca de 33 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar e, de acordo com levantamento do IBGE de 2022, perdeu 10,6% de sua vegetação campestre e 7,9% da vegetação florestal, ao mesmo tempo que a área agrícola cresceu 50,1% e as regiões de pastagem, 27,9%.
Por isso, para Ceres, é necessário reverter a lógica ainda vigente das grandes monoculturas voltadas à exportação de commodities, que se reflete também no aumento das tensões e conflitos no campo. Algo que só poderia ser transformado com medidas estruturantes mais intensas e com incentivos mais atrativos.
“É preciso ampliar as condições para que as famílias voltem a produzir alimentos, para estruturar e condicionar boas possibilidades para adquirir as sementes, os insumos, fazer uma produção e uma compra garantida para ter o desenvolvimento das agroindústrias, o beneficiamento do campo, agregando valor a essas comunidades a partir das nossas cooperativas e associações. Tudo isso é importante para podermos estruturar uma política de produção de alimentos no Brasil”, conclama a dirigente do MST.
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Reforma agrária e horizonte de esperanças
Mesmo com um orçamento recorde, a agricultura familiar ainda representa apenas 16,4% do montante anunciado no Plano Safra 2023/2024. A maior parte dos R$ 436 bilhões está comprometida com o agronegócio, superando as expectativas dos próprios empresários do setor.
Segundo Amaro, o desequilíbrio se intensifica com a constatação de que ainda há outros programas do governo federal voltados aos grandes produtores e que já existe uma infraestrutura bem montada para escoar itens como a soja e o milho. Ele menciona medidas como a Lei Kandir, que isenta de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) as exportações de produtos primários, aumentando a competitividade internacional.
“Por isso a gente reivindica que a gente possa ter um pacote de bondades proporcional ao do agronegócio para que a gente consiga alavancar a agricultura camponesa, e isso só será possível com o braço forte do Estado, investindo em fomento para fazer essa alavanca na agricultura familiar e camponesa, possibilitando um crescimento rápido e vertiginoso”, dispara.
Para Vânia, que tem esperanças de um Plano Safra ainda “mais positivo” no próximo biênio, também pensando em avanços inéditos que atacam problemas como a desigualdade de gênero no campo e a evasão rural para as cidades.
E os sinais seriam ainda mais claros se pautados pelos discursos de Lula, como no próprio evento de lançamento do Plano Safra: “Não podemos permitir que as famílias precisem ocupar as terras por morosidade do Estado. Nós precisamos fazer a reforma agrária para que as famílias não precisem reivindicar”, disse o presidente na ocasião.
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O objetivo dos movimentos populares agora é aproveitar todas as ferramentas possíveis e interlocuções com diferentes ministérios para democratizar ao máximo a alimentação saudável de qualidade - algo ainda muito restrito e elitizado, especialmente nas grandes cidades. Acima de tudo, pensar na otimização da produtividade rural a partir de agora com os olhos no futuro, derrubando barreiras à agricultura familiar para as futuras gerações.
“Temos que pensar a sucessão rural, com acesso à terra, ao crédito, à assistência técnica e extensão rural, às agroindústrias familiares, o fortalecimento das cooperativas para que essa juventude possa ter essa produção, organizá-la e comercializá-la. E aí vamos conseguir entrar num círculo virtuoso em que teremos dinheiro para poder permanecer no campo. É nesse clima de reconstrução e pelo bem viver puxado pela Marcha das Margaridas que a gente pensa no campo brasileiro”, exalta Vânia.
As linhas de crédito e o repasse de recursos podem ser solicitados junto ao BNDES e a outras 77 instituições financeiras cadastradas. Para mais informações, acesse o site do Ministério do Desenvolvimento Agrário ou do próprio BNDES e participe. Afinal, agroecologia é vida.
Edição: Rodrigo Chagas