Entrevista exclusiva

'Guerra do Dendê': indígena Tembé baleado denuncia violência de seguranças da BBF, gigante do agronegócio no Pará

Kauã Tembé conta que fazia protesto quando agentes 'chegaram atirando'; conflito já fez cinco vítimas em agosto

Brasil de Fato | Tomé-Açu (PA) |
Ainda com dificuldade de locomoção, Kauã Tembé levou um tiro na região da virilha em 4 de agosto - Murilo Pajolla/Brasil de Fato

Kauã Tembé, 18 anos, é um sobrevivente da "Guerra do Dendê", um conflito entre forças desproporcionais que deixou cinco indígenas feridos só em agosto deste ano, no nordeste do Pará. 

Os tiros que atingiram Kauã em 4 de agosto e mais três indígenas poucos dias depois foram disparados por seguranças da empresa Brasil BioFuels (BBF), a cerca de 200 quilômetros de Belém (PA), cidade onde ocorreria dias depois a Cúpula da Amazônia, que reuniu presidentes e outros representantes dos oito países situados no bioma. 

O conflito se desenrola há três anos nos municípios paraenses de Tomé-Açu e Acará, onde indígenas e quilombolas se opõem aos impactos ambientais da BBF, uma gigante do agronegócio que produz o óleo de dendê usado para fabricar biocombustível. 

Andando e falando com dificuldade, Kauã contou que estava protestando pela saída da BBF do território ancestral dos Tembé, quando foi surpreendido pela violência dos seguranças privados da empresa.

"Senti medo de morrer dentro do meu território", relatou Kauã.

O jovem indígena Tembé conversou com a reportagem do Brasil de Fato na casa da mãe dele, no distrito de Quatro Bocas, em Tomé Açu, onde se recupera do tiro que levou na região da virilha. Após uma semana hospitalizado em Belém (PA), ele recebeu alta com a promessa dos médicos de que não sofrerá sequelas. 

Em entrevista disponível na íntegra a seguir, Kauã diz que as plantações de dendê – uma espécie de palmeira – impede os indígenas de consumir água, pescar e caçar. 

Mesmo sob risco de morte, ele diz que pretende prosseguir na luta contra a presença da BBF. Os dendezais da empresa ficam em áreas indígenas não regularizadas, mas reivindicadas pelos indígenas como terras tradicionalmente ocupadas. 

Em nota (acesse na íntegra), a BBF alegou que no dia 4 de agosto invasores armados impediram seus funcionários de trabalhar, invadiram a sede da empresa e destruíram instalações físicas da fazenda. Afirmou ainda que não existe sobreposição de terras e que mantém diálogo contínuo com as aldeias indígenas. 

Leia a entrevista com Kauã Tembé na íntegra:

Brasil de Fato: O que aconteceu no dia 4 de agosto, quando você foi baleado?

Kauã Tembé: Eu estava no movimento indígena pela retirada da BBF do nosso território. Ela vem prejudicando a gente e o nosso meio ambiente há anos. [A BBF vem] acabando com os nossos igarapés, com a caça, com a mata. A gente foi fazer um protesto para que eles se retirassem do nosso território. E a gente foi recebido a tiros. 

Onde ocorria esse protesto?

Hoje, a empresa fica dentro do nosso território indígena. E a gente estava fazendo um protesto dentro do nosso território indígena. Fomos protestar em frente à sede da BBF. A gente foi recebido a tiros pelos seguranças armados da empresa. Eles não queriam diálogo com a gente. E eu fui vítima. 

De quem partiu a violência?

Eles não queriam conversa, não tinha diálogo da parte deles. A gente pediu a retirada deles da sede, sem violência, para que eles se retirassem da sede [da empresa]. Eles não aceitaram e vieram apontando arma para a gente. 

Vocês também estavam armados?

A gente não estava com arma, só arco e flecha. Eles começaram a atirar no chão, na nossa direção. Foi quando um dos seguranças atirou na minha direção e acertou. 

Ele mirou em você?

Mirou. 

Um vídeo que circulou nos noticiários e nas redes sociais mostram você baleado, sendo carregado por outro indígena. O que passava pela sua cabeça?

Eu só desmaiei, entendeu? Eu acordei indo para o hospital. Senti medo de morrer. De morrer dentro do meu território. 


Kauã é carregado após levar tiro de seguranças da BBF / Reprodução

Três dias depois que você foi baleado, outros três indígenas Tembé também foram atingidos por tiros durante um protesto contra a BBF. O que você sentiu quando descobriu que não tinha sido a única vítima?

Eu senti medo. Senti medo [olhos lacrimejam]. 

Raiva também?

Raiva [chora]. A gente não vai desistir. A gente vai retomar o nosso território vivo. Vamos até o último índio. A gente não vai desistir dessa luta. 

Quais prejuízos a empresa leva às comunidades indígenas?

[Prejuízos] ambientais. Hoje nas nossas florestas e nas aldeias não tem caça. Os igarapés estão secando por conta dessa empresa e do veneno que ela joga nos rios. Ele acaba matando nossos peixes. A gente fica sem caça, sem mata.  

Hoje é difícil alguém tomar banho, entrar no rio. Porque dá coceira. Cria feridas. Os peixes estão contaminados com a tiborna [subproduto do cozimento do dendê que, segundo os indígenas, é jogado sem tratamento na natureza].

Quais armas os seguranças da BBF usam e como se dá a atuação deles?

Escopetas. Só calibre 12. Eles fazem ronda e também ficam provocando a gente. Passando por nós. Se a gente está ali, na manifestação, eles ficam passando com a arma para fora do carro. 

Eles faziam muita vigilância com drone, mas faz um tempo que não fazem mais isso. O drone ia na aldeia mesmo, dentro da aldeia. Em cima da aldeia, à noite. 

A BBF alega que seus seguranças atuam para coibir invasores e condutas criminosas. Você se considera criminoso ou invasor?

Não! Como é que a gente vai ser invasor? Como é que a gente vai invadir o nosso próprio território? Isso não existe. A gente está lutando para ter liberdade dentro do nosso território. Pela retirada dessa empresa do nosso território. 

O que te motiva a lutar, mesmo correndo risco de morte?

Essa luta é nossa, indígena. Não é de agora. É de anos e anos atrás. E a gente não vai desistir dessa luta. A gente só quer liberdade dentro do nosso território. 

Já vinham acontecendo esses ataques da empresa contra a gente. A gente sempre é recebido a tiros por parte deles. Eles não querem saber se é, se não é índio ou não é. Eles estão chegando ali atirando. Não tem diálogo com eles. 

Edição: Rodrigo Chagas