“Os narcisistas da política são homens. Agente tem que debater muito isso, o fundamento narcisista da política masculina. Nós somos uma classe, nós somos uma raça, nós somos a história e nós somos, sobretudo, a alternativa”. A observação foi feita pela filósofa e escritora Marcia Tiburi na roda de conversa intitulada "Desconstruindo o Fascismo, rumo a uma Porto Alegre feminista, antifascista, antirracista e antilgbtfóbica". O encontro aconteceu neste domingo (20), na sede do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários).
Exilada do país por quase cinco anos, devido a ameaças de morte e perseguição, Marcia Tiburi voltou ao país este ano trazendo na bagagem seu novo romance, "Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve". A primeira rodada de lançamento do livro aconteceu neste final de semana, em Porto Alegre. Juntamente, sua participação na roda de conversa, promovida pela Secretaria de Movimentos Populares do PT de Porto Alegre. O bate-papo contou com a participação das deputadas federais Maria do Rosário e Reginete Bispo, ambas do PT, Fernanda Melchionna (PSOL), e da vereadora de Porto Alegre Abigail Ferreira (PCdoB).
“Nós todas somos mulheres sob ameaça de morte”
Ao comentar o cenário político vigente, Márcia pontuou o momento histórico para o Brasil e para o planeta e a necessidade de pensar em alternativas. “Já ficou claro que a política masculinista, a política dos homens, essa política patriarcal, que é uma política da violência, destruiu o planeta até aqui. A política desses homens baseada na violência nos destruiu. Nós todas estamos ameaçadas e condenadas à morte por essa política. Nós todas somos mulheres sob ameaça de morte.”
A filósofa também destacou o caráter multitarefa prático pelas mulheres. “Todas fazemos muitas coisas, porque estamos todas, a todo momento, buscando melhorar não apenas a nossa vida no sentido individual, mas também a vida do coletivo. A ética e a política do cuidado que nós exercitamos nas nossas casas, nos nossos coletivos, no nosso trabalho, no dia a dia, nas instituições, é algo da nossa cultura feminina e feminista. Os homens não trabalham com esse paradigma do cuidado, mesmo quando eles querem sequestrar esse termo. Nós somos as agentes da sobrevivência da nossa própria espécie”, disse.
De acordo com ela, as mulheres fazem isso porque pensam na coletividade, diferente da lógica masculina que pensa na individualidade. “Não existem mulheres que sobrevivem fora do coletivo. Nós estamos aqui fazendo a intrusão na política. Temos aqui deputadas, mulheres militantes. Mulheres que têm cargos políticos são mulheres corajosas, aguerridas, mulheres que foram cometer a heresia de se intrometer, de se colocar nesse lugar onde elas não foram chamadas e são tratadas como intrusas.”
Mulheres e política
“Eu acabei me tornando candidata lá em 2018, na época da ascensão do fascismo, e eu tive uma experiência muito triste. Lá eu entendi o que era ser uma intrusa. De fato, toda mulher que faz política é tratada como uma intrusa, os homens não querem que a gente esteja lá. Os homens querem que a gente esteja entre o tanque e a cozinha naquela velha fórmula que o patriarcado criou para os nossos corpos. Para aquela forma, o tanque, o fogão. E qual é o terceiro elemento que triangula com esses dois elementos básicos do campo de concentração do lar? O cemitério. Querem que nós estejamos mortas”, refletiu.
Conforme relatou, quando saiu do país foi protegida por órgãos internacionais. Márcia destacou ainda a atuação da deputada Maria do Rosário frente a Bolsonaro e o bolsonarismo.
A escritora também ressaltou a disputa nas eleições municipais do ano que vem. “Vamos enfrentar a próxima eleição com um projeto de enfrentamento a esse de fascistização que aconteceu com o Brasil nos últimos anos, onde nós fomos massacradas. Nós fomos invadidas por um projeto de matança de pessoas", disse, afirmando que "o fascismo é um projeto de extermínio" e que "a ameaça de morte foi transformada em tecnologia política".
O patriarcado é narcisista
Na avaliação da filósofa, o patriarcado é narcisista e só se preocupa com seu "poderzinho". “Não vê lá na frente como nós. Todas nós sabemos que estamos ameaçadas. Estamos vendo a nossa sociedade ameaçada. As crianças ameaçadas, as pessoas das periferias ameaçadas. A fome ameaçando, a violência ameaçando, o feminicídio ameaçando. Vemos a educação ameaçada, o esporte ameaçado, a cultura ameaçada, a saúde ameaçada, a natureza ameaçada, tudo ameaçado. E quem ameaça a existência? Os homens. A política dos homens já era, acabou. A gente está aqui tentando sobreviver a um negócio que já era. Temos que fazer uma revolução das mulheres”, sentenciou.
Conforme ressaltou, é preciso de união para construir a hegemonia, o que "vai implicar em cada uma olhar para a outra, como sendo mesmo aquela irmã com quem a gente vai construir não só a sororidade, mas na sororidade, o reconhecimento da dor da outra".
Organizar a sociedade
“A gente quer o governo para a gente poder organizar essa sociedade, para a gente poder sobreviver. Porque o projeto do fascismo é o projeto do capitalismo. É o projeto do patriarcado que só avança e se acirra cada vez mais. É o projeto do extermínio. É o projeto da nossa extinção como espécie”, alertou.
Márcia afirma ser muito importante para as mulheres a coletividade. “Como um coletivo gigante, porque nós somos muitas mulheres, somos múltiplas. E juntas somos invencíveis e podemos seguir em frente. Nada nos impede. E se formos juntas, não teremos medo. E se formos juntas, atenciosas e cuidadosas, não seremos mortas pelos fascistas, como aconteceu com Marielle Franco, que é uma figura que a gente deve sempre lembrar, porque representou muito nas nossas vidas. Nós somos todas herdeiras do acontecimento, do fator Marielle Franco, e precisamos estar atentos a isso. E sabemos que só sobreviveremos se estivermos unidas no coletivo.”
Luta permanente das mulheres
“Nós metemos cara para estar onde estamos, nós demos cotovelada, porque nada para nós vem de graça. É uma conquista mesmo todos os espaços que nós temos. O mundo nos atribuiu a tarefa de sermos cuidadoras. Nós não nascemos e dizemos que queremos sermos cuidadoras. A humanidade não vive sozinha”, destacou a vereadora Abigail.
A parlamentar criou na Câmara de Vereadores uma Frente Parlamentar de Economia de Cuidados. De acordo com ela, a proposta da frente é fazer o debate com a sociedade sobre o assunto. “Muitas de nós estão dentro de casa cuidando de filho, de avó, de mãe, de pai, de sogro, e não estamos no mercado de trabalho. Muitas de de nós, quando engravidam, não conseguem voltar ao mercado de trabalho porque não tem equipamento social para se realizar profissionalmente. O nosso lugar é em qualquer lugar, mas onde não necessariamente onde nós queremos estar”, apontou.
:: 'Queremos cuidar de quem cuida', afirma a vereadora Biga Pereira ::
A deputada federal Maria do Rosário destacou a importância de se saber de onde vem. “Todas que estão aqui, independentemente de exercerem tarefas no parlamento ou na literatura, ou aqui ou ali, decidimos participar da vida política deste país. E decidimos carregar todas as mulheres conosco, todas aquelas que lutam no seu cotidiano para transformar a vida pela dignidade humana. O lugar de onde a gente fala é sim um lugar da classe trabalhadora que não entendeu, talvez ainda totalmente, que ela precisa romper também do ponto de vista da estrutura patriarcal”, ressaltou.
Conforme enfatizou a parlamentar, é preciso, diariamente, enfrentar essa tendência estruturada. "Nós nos desafiamos a não nos acomodarmos à instituição. Uma cidade justa para as mulheres será justa para todas as pessoas e é isso que nós podemos construir. Todo o dia enfrentamos o medo. Estamos em um final de semana em que mãe Bernadete foi morta na Bahia. Não dá para dizer que derrotamos o fascismo é preciso que façamos um cordão humano que nos faça viver."
Em sua fala Reginete Bispo apontou que Porto Alegre está entregue para a especulação imobiliária. “Nossos símbolos estão sendo destruídos. Porto Alegre é uma cidade da rua, em que se frequenta parques. Se não fosse a resistência popular, o Executivo municipal teria privatizado todos os parques. Porto Alegre é a capital aqui, no extremo sul do país, que mais tem comunidades quilombolas, que estão sofrendo a ameaça cotidiana da especulação imobiliária”, disse.
Ela destacou que o RS elegeu a maior bancada negra do país na última eleição municipal, e que recentemente elegeu nas eleições estaduais as primeiras deputadas negras na Assembleia Legislativa e na Câmara de Deputados. Também lembrou do assassinato da mãe Bernadette e do assassinato ocorrido anos atrás no Quilombo dos Alpes em Porto Alegre. “Vai sendo naturalizado a violência neste país. É uma sociedade que descarta as pessoas e sobretudo descarta nós mulheres. Não existe discussão nesse país da democracia, de justiça e de liberdade se a gente não considerar a luta das mulheres negras, a luta dos povos indígenas por resistência e sobrevivência nesse país. A escravização de seres humanos no Brasil é um processo contínuo e permanente.”
Já a deputada Sofia, em sua intervenção, fez um relato sobre as bibliotecas estaduais escolares que estão abandonadas no estado, que de acordo com ela viraram depósito, diferente do que acontece com as do município de Porto Alegre. “Desafio vocês visitem uma biblioteca de escola municipal. É emocionante. Tem escola que tem projetos das meninas de vermelho, que é da menstruação, tem escola que está revolucionando, escrevendo junto com as mães”, exemplificou.
No início de sua fala Sofia leu um trecho do livro Como Conversar com um Fascista, de Marcia Tiburi. “ O fascista não sente angústia e isso porque a morte não é para ele uma alternativa, ele não lembra que vai morrer, ele não morre simbolicamente como acontece às pessoas em geral algumas vezes na vida. Nosso desafio aqui em Porto Alegre é de enfrentar o fascismo.” A parlamentar também destacou a resistência da população porto alegrense contra a privatização do parque Harmonia.
Por fim, Fernanda Melchionna pontuou sobre o processo de cassação das seis deputadas federais. Conforme destacou a parlamentar, uma coisa foi derrotar Bolsonaro nas urnas, outra coisa é o bolsonarismo nas ruas, uma luta que segue. “É preciso reconhecer, essa história de violência, de apagamento das mulheres da história e ao mesmo tempo de sub-representação em um Estado que sempre foi autoritário. O desafio é sempre reverter essa desigualdade histórica na participação das mulheres nesses espaços de poder.”
Fernanda também citou os números da violência contra as mulheres. "A cada duas horas, uma de nós está sendo assassinada, a maioria negras. A cada 10 minutos uma de nós está sendo estuprada, a maioria meninas, adolescentes, muitas vezes dentro do seu vínculo familiar, dentro do seu círculo de pessoas conhecidas."
“Precisamos entender esse processo de desbolsonarização enxergando as prefeituras também como momento dessa disputa. Nós precisamos fazer da eleição de 2024 com um grande movimento e as mulheres estarão na linha de frente. Construir a possibilidade de uma prefeitura livre de Bolsonaro, mas que também pense em uma cidade antifascista, antilgbtfóbica, antimachista, antirracista com politicas públicas concretas e sobretudo criando canais de participação, de organização. Precisamos da unidade na diversidade”, avaliou, lembranso da união formada em 2018, com Edegar Pretto e Pedro Ruas.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira