A representatividade é um elemento crucial para garantir uma sociedade mais justa e equânime
Por Ana Paula Alvarenga* e José Carlos Garcia** | O artigo mais recente desta coluna Avesso do Direito, publicado duas semanas atrás, Por que a representatividade no Supremo é importante?, sustentava a “ousada” tese de que, em uma sociedade democrática, todas as instâncias de poder do Estado, inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), devem representar sociologicamente, grosso modo, o povo brasileiro tal como é, não apenas homens brancos sudestinos. Com base em números sobre demografia e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o artigo, na prática, defende que o presidente Lula indique para a vaga a ser aberta naquele Tribunal, com a aposentadoria da Ministra Rosa Weber, uma mulher, preferencialmente uma mulher preta, afrodescendente.
Aquele artigo acabou gerando certa reação crítica de pessoas do campo progressista, como se, nele, tivesse sido negligenciada a condição de que o nome representativo fosse de esquerda, ou progressista. O fundamento desta reação pode ser traduzido na seguinte formulação: “A mim não importa o gênero, a cor da pele ou a orientação sexual, o que me interessa é se é progressista ou não”. Compreende-se claramente o motivo deste posicionamento, depois da farsa processual movida contra o presidente Lula, reconhecida e declarada pelo Supremo, para interferir nas eleições de 2018, depois da reforma trabalhista e a consequente sucessão de ataques contra os direitos das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, depois do surgimento manifesto do neofascismo entre nós e dos ataques a todos os setores populares. Compreender um erro, entretanto, não pode implicar aceitá-lo, aderir a ele. O presente texto visa explicar com clareza nossa posição, bem como porque aquela formulação é equivocada e não deveria ser utilizada por pessoas que se acreditam de esquerda.
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Em primeiro lugar, porque ela é uma negação integral ao próprio tema levado a discussão, a representatividade social de segmentos sociais excluídos, invisibilizados e/ou subalternizados e que sofrem cotidianamente as ações e decisões do Poder. Dizer que o que importa é ser de esquerda, independentemente de cor, gênero, orientação sexual, não é uma forma de enfrentar o debate, apenas de fugir dele, contorná-lo; em última instância, de desprezá-lo. Equivale a dizer que aquela representatividade não tem qualquer relevância e que as brutais contradições performativas, para usar uma expressão habermasiana, que sua ausência engendra em um projeto democrático, tampouco são relevantes: mulheres são a maior parcela da população, mas são minoria no Judiciário e em diversos outros espaços de poder, e sua participação se vai reduzindo conforme se ascenda na carreira – haveria um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, como o aprovado pela Resolução 492 do CNJ (citado no artigo anterior) se não houvesse uma participação considerável das mulheres na sociedade organizada e na própria Justiça? Pessoas pretas são as maiores vítimas de violência no país, compõem o maior contingente de presos do país, 63,7%, mas não passam de 19% do Judiciário – é indiferente, ou irrelevante, a sensibilidade do julgador para a discriminação racial em um Judiciário 81% branco? O tema da demarcação dos territórios indígenas e os crimes contra os direitos humanos daquelas populações, assim como os crimes contra a preservação de sua cultura e tradições, ganham a cada dia mais visibilidade no Brasil – a invisibilidade daquelas populações nada tem a ver com o fato da quase absoluta ausência de pessoas indígenas nas estruturas do sistema de Justiça? Insistir naquela formulação parece-me subestimar o alcance deste debate, dizer que tudo será magicamente resolvido desde que haja alguém “de esquerda”, e que representatividade não importa. Assim, por ser uma forma de fugir do debate, e não de debater, a formulação já se mostra, em princípio, inaceitável.
Em segundo lugar, além de representar fuga do debate, a formulação demonstra que não o compreende nos termos em que ele se apresenta. Ela aprisiona intelectualmente quem a apresenta na discussão a visões conservadoras no campo do feminismo, que identifica com um identitarismo raso e desconectado de qualquer outro traço social – como a classe, por exemplo. É evidente que existe tal identitarismo liberal, e que ele tem ocupado espaço crescente de mídia. A luta das atrizes estadunidenses para ganharem as mesmas fortunas que seus similares masculinos pode ser justa, mas não toca na verdadeira questão, étnica e de classe, que manterá aprisionada na violência real e simbólica e na subalternização a maior parte das mulheres, sobretudo, pretas – algumas das quais, trabalhando para as mulheres bilionárias do topo. Sob o neofascismo, a identidade étnica ou de gênero foi e é usada para desconstruir, não para reforçar, os avanços ocorridos neste campo nas últimas décadas. Apenas por hipótese, imagine-se viver em um país onde um homem preto dirigisse, sei lá, a Fundação Palmares e a destruísse? Ou uma mulher que ocupasse o Ministério da Mulher e desmontasse os esquemas de proteção contra a violência doméstica e de promoção do papel da mulher na sociedade? Deve ser triste viver em um país assim... Mas reduzir o debate identitário a este campo é desconhecer os últimos 60 anos dele, produções como as de Lélia Gonzalez, Suely Carneiro, Bell Hooks, Angela Davis, Silvia Federici, que correlacionam discussão de gênero com classe, raça e outros marcadores sociais. É estar aquém da Resolução 492 do CNJ, já citada aqui, que trata das interseccionalidades da discussão de gênero, incluindo outros marcadores sociais, como classe, etnia, orientação sexual, religião, origem regional etc.
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Claro que pode haver um debatedor de esquerda, ingênuo o suficiente para negligenciar a classe nesse debate, erro simétrico e tão grave quanto negligenciar os outros marcadores. Mas, então, a formulação, em termos lógicos, não deveria mudar de "pouco importa, desde que seja de esquerda", para "ok, mas desde que seja de esquerda"? Quando efetivamente se dá relevância às questões de gênero e raça e às profundas violências e injustiças, materiais e simbólicas, que elas produzem no Brasil, o discurso não pode ser o de apagá-las, e sim o de considerá-las e integrá-las, ainda que se sustente (a nosso ver, corretamente) que não basta ser preto ou mulher, que é indispensável que promova bandeiras de inclusão social, de defesa dos direitos dos trabalhadores, de sustentabilidade ambiental, de direitos humanos para todos e todas, além da própria identidade. Esta, me parece, seria uma forma bem mais pertinente de problematizar visões limitadoras e liberais sobre identitarismo.
Em terceiro lugar, e bem mais grave, além de representar fuga do debate, além de demonstrar certo desconhecimento sobre seus reais termos, a formulação aqui criticada esvazia politicamente a capacidade de construir uma efetiva política de inclusão. Em uma sociedade em que racismo e patriarcalismo são estruturais, pretos e mulheres não “irão ocupando gradualmente, de forma natural, espaços públicos de poder”. É preciso que haja uma ação consciente, deliberada e estruturada para que os múltiplos impedimentos sociais e históricos sejam removidos, de modo que estas pessoas possam ocupar cada vez mais posições sociais e políticas relevantes. E não se tem uma sociedade democrática onde falta comida, falta pão, falta emprego, falta espaço de poder e decisão para todas e todos os afetados e concernidos e sobra desigualdade social, discriminação, exclusão e opressão.
Uma representação mais diversificada nos espaços de poder, como o Supremo Tribunal Federal, é fundamental para que as decisões judiciais proferidas pela mais alta Corte do país levem em consideração uma variedade de perspectivas e experiências, e para que as políticas públicas sejam mais sensíveis às necessidades e realidades das pessoas subalternizadas. A nomeação de uma ministra negra para o STF também pode contribuir para uma mudança gradual na percepção pública sobre as capacidades e competências das mulheres e das pessoas negras em posições de destaque e influência, rompendo estereótipos e preconceitos arraigados.
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Por tudo isso, compreendemos que em uma sociedade histórica e estruturalmente desigual, patriarcal, misógina e racista a luta pela representatividade precisa encontrar ressonância e respaldo em políticas públicas e escolhas políticas, que acolham a necessária participação de todas e todos subalternizados nos espaços de poder, sob pena de permanecermos sob o signo da exclusão. Nesse sentido, insistimos que a representatividade é um elemento crucial para garantir uma sociedade mais justa e equânime e a indicação de uma ministra negra para o Supremo Tribunal Federal certamente seria um passo importante na direção de tornar as instituições mais inclusivas e reflexivas da diversidade da nossa população. E que seja de esquerda, progressista, comprometida com a defesa intransigente da democracia, dos direitos fundamentais e dos direitos sociais. Não nos parece tão complexo compreender que a interseccionalidade abrange gênero, raça, classe social e posicionamento ideológico. Afinal, não existem juristas negras com notável saber jurídico e perfil progressista no Brasil?
Sob um outro aspecto, no qual, em geral, as pessoas que usam a formulação aqui criticada têm boa dose de razão, as políticas públicas de inclusão e representatividade tenderão a serem gestadas mais facilmente em governos de esquerda ou centro-esquerda do que em governos de direita, ao menos no Brasil. A bandeira dos direitos humanos, que a esquerda historicamente sempre criticou por ser limitada e abstrata, por não se articular com as formas concretas de vida, exploração e opressão que afetam as pessoas históricas, passou a ser defendida, nos últimos anos, fundamentalmente por partidos, organizações, movimentos e pessoas que se dizem de esquerda, em que pese sua origem remontar ao núcleo das revoluções burguesas da Europa e dos Estados Unidos no século XVIII, especialmente a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Americana de 1792. Uma agenda antirracista e feminista é possível de ser defendida por partidos e governos de centro-direita em outros países, como na Europa, por exemplo, ainda que a defendam de forma mais limitada, incapaz de lidar com as contradições de classe que se apoiam em formas pré-capitalistas de opressão e exploração para aumentar a acumulação de capital. Não por cá. E isso torna o fato de pessoas de esquerda relativizarem essa agenda algo ainda mais sério, porque reduz concretamente a capacidade de luta política pela sua defesa intransigente, mais crítica, mais radical e mais includente.
Acreditamos que um bom exemplo desta redução de capacidade política está na fragmentação de candidaturas de mulheres, pretas, indígenas ou não, para a futura vaga da ministra Rosa Weber a abrir-se no Supremo. O campo progressista parece perdido numa profusão de nomes que, a rigor, pela dispersão política, reduz a chance concreta de que algum deles “emplaque”. Muitos destes nomes, em que pesem as qualidades pessoais inegáveis, são nomes sem construção política sólida e que, bem por isso, embalam candidaturas com baixíssimo grau de adesão e sucesso. E, ainda que a indicação da primeira mulher preta a ocupar uma vaga naquela Corte seja, a nosso ver, uma questão de extrema importância sob o ponto de vista da construção desta representatividade crítica, a viabilidade política disso, com o estreitamento do tempo, nos parece tornar o sucesso desse desafio ainda mais remoto.
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No artigo da última coluna, duas semanas atrás, mencionamos alguns dados sobre a representação feminina no Judiciário, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, e do Censo do Judiciário, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Na ocasião, dissemos que 51% da população brasileira é composto por mulheres e que, em 2018, elas ocupavam 44% dos cargos de juiz substituto, cargo inicial das carreiras da magistratura, 39% dos de juízes titulares e 23% dos de desembargadores dos tribunais. No Superior Tribunal de Justiça – STJ, segundo tribunal mais importante do país, são seis mulheres em trinta e três cargos, algo em torno de 18%. No Supremo Tribunal Federal são apenas duas mulheres em onze cargos, ou seja, os mesmos 18%. Se, para a vaga da Ministra Rosa Weber vier a ser indicado um homem, a Ministra Carmen Lúcia será a única mulher da Corte, e representará, sozinha, 9% de sua composição. Isso não é aceitável, sob nenhuma perspectiva crítica possível.
Lidar com esta circunstância exige um apoio decidido à nomeação, pelo presidente Lula, de uma mulher para suceder a ministra Rosa Weber, ao menos preservando o acanhado percentual de 18% de mulheres na composição da Corte Suprema, até que ele possa ser ampliado. Este apoio decidido implica, a nosso ver, a sustentação da candidatura que demonstre maior viabilidade de indicação e aprovação pelo Senado, mesmo que a tão necessária nomeação de uma afrodescendente não seja possível agora – que isto nos sirva de lição para priorizarmos a construção de um nome viável para vagas futuras.
A imprensa vem sistematicamente divulgando nomes de pessoas que poderiam ser indicadas a esta vaga, nomes estes que nem sempre se repetem. Dentre todos, um dos que tem apresentado maior consistência e boas citações é o da desembargadora federal Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, com sede no Rio de Janeiro. Juíza Federal desde 1993, desembargadora desde 2014, Simone formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), tem mestrado em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorado em Direito Público pela Uerj e é professora de direito processual penal da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Magistrada há 30 anos, tem larga experiência profissional, sólida formação acadêmica e um perfil comprometido com os direitos humanos, a inclusão social, contra toda forma de discriminação e preconceito e pela preservação e fortalecimento dos direitos sociais e trabalhistas. É, indiscutivelmente, uma mulher com notório saber jurídico, sólida experiência e perfil progressista, e um nome que, na nossa visão, deveria ser encampado por todos aqueles que se dizem de esquerda e que desejam um Judiciário pelo menos com maior representatividade feminina e compromisso social.
* Ana Paula Alvarenga Martins é juíza do Trabalho do TRT 15, mestranda em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.
** José Carlos Garcia é juiz federal, doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio.
*** A coluna mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelo juiz federal José Carlos Garcia e pela juíza do Trabalho Ana Paula Alvarenga, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Conselho da Associação das Juízes e Juízas para a Democracia (AJD).
**** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas