Não me chocou ver a foto publicada no jornal Folha de São Paulo de sexta-feira (4). Na verdade, a capa do jornal e as manchetes destaques em ordem de importância dizem muito da sociedade brasileira e do modo com que acionamos nossos ferramentais psíquicos de empatia.
Se a foto em destaque, ilustrando a manchete trazia o abraço entre o Presidente da República no novo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin, em sua solenidade de posse com o seguinte texto: “Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula, toma posse no STF", é a foto secundária ao pé da página que chama a atenção e deveria essa sim ter se tornado manchete.
Porém, os jogos de manutenção do poder, os interesses de raça e classe induzem a compreensão do fato.
Me explico: ao pé da página está uma excelente imagem fotográfica, registro do fotógrafo Eduardo Anizelli, de parte da porta de um caminhão preto trancada, por onde, entre as suas brechas escorrem até o chão um liquido que ali se acumula de cor vermelha. O texto orientador da notícia, abaixo da foto nos informa: “Caveirão derrama sangue diante de hospital no Rio – Blindado da PM parado em frente ao hospital Getúlio Vargas traz corpos de dois homens mortos em operação na zona norte do Rio, na quarta (2), que deixou ao menos dez vítimas”.
Este caminhão apelidado cinicamente de “Caveirão” pela população carioca, carrega em seu interior corpos de seres “quase não humanos” a quem a sociedade brasileira, nós – eu e você, permite que sejam eliminados ao bel prazer de ações políticas travestidas de políticas de segurança pública. Foi o pensador negro Frantz Fanon que cunhou a perspectiva de que os corpos negros nos países colonizados e de dominação branca são de pessoas abaixo da linha do ser. Não são gente, traduzo: ao não serem considerados gente, humanos, são tratados como um conjunto de carne humana a ser abatida.
É deste modo que a posse de um novo ministro do STF tem mais importância do que a barbárie que as forças de segurança vêm impetrando em estados com governos à direita ou a esquerda, caso de Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, onde operações policiais à título de combate ao narcotráfico dentro de comunidades faveladas abateram 45 pessoas no espaço de 6 dias corridos.
Vale notar que o Ministério Público de São Paulo divulgou dados informando que após dois anos de queda o número de ações letais da Polícia Militar de SP aumentou 15% apenas no primeiro semestre de 2023. Na Bahia, estado considerado progressista, entre 2015 e 2022, durante governo Rui Costa as ações letais aumentaram em 313%. Somente no ano de 2022 a polícia baiana (os registros não fazem distinção entre civil e militar) matou 1.464 pessoas, tornando-se líder absoluta de mortes no Brasil. E isso não choca a nossa sociedade. Essa é a ideia força deste artigo.
Recorro ao pensamento de Achille Mbembe, um dos mais proeminentes teóricos contemporâneos, que trouxe à tona uma visão brutalista sobre a nossa sociedade e o mundo em que vivemos.
Achille Mbembe, um filósofo, historiador e cientista político camaronês, ganhou notoriedade com suas obras que abordam questões centrais relacionadas ao colonialismo, pós-colonialismo, necropolítica e o impacto da violência na construção da sociedade moderna. Através de suas análises, ele propõe uma abordagem "brutalista", que expõe as tensões e contradições presentes no tecido social.
Um dos conceitos-chave defendidos por Mbembe é a "necropolítica", que se refere ao uso do poder soberano para controlar a vida e a morte da população. Em outras palavras, a necropolítica destaca como os sistemas de governo modernos mantêm o poder através da gestão e manipulação da morte. Essa abordagem revela como certos grupos são marginalizados e oprimidos, e como as estruturas de poder impulsionam a violência e a desigualdade social.
Outro aspecto essencial do pensamento de Mbembe é o "espaço-tempo da desordem", uma ideia que desafia a concepção tradicional de espaço e tempo. Ele argumenta que a desordem e o caos se tornaram elementos integrantes da nossa era, e a política contemporânea está enraizada nessa dinâmica. O autor nos convida a pensar em como as crises, como guerras, desastres naturais e pandemias, moldam nossa experiência do mundo e influenciam as relações sociais, a percepção de vida, morte e o valor agregado a ela. Relações mercantilizadas sempre.
Ao analisar o conceito de "Brutalismo", Mbembe explora as estruturas de poder que sustentam sistemas opressivos e revela a face mais sombria da humanidade. Ele nos incita a enfrentar as consequências brutais de nossas ações coletivas, bem como a repensar nossas instituições e práticas sociais. O Brutalismo de Mbembe expõe a urgência de mudanças significativas para construir um mundo mais justo e humano. Estamos preparados para isso?
Mbembe nos provoca a enfrentar questões desconfortáveis sobre a violência e a exploração que moldaram e continuam a moldar nossas sociedades.
Ele questiona a normalidade das estruturas de poder, bem como a resistência às mudanças necessárias para construir um futuro mais harmonioso e equitativo.
Em conclusão, a concepção brutalista de Achille Mbembe é um convite à reflexão profunda sobre as estruturas de poder e as dinâmicas sociais que moldam nosso mundo contemporâneo.
É com a perspectiva de uma governança global baseada no brutalismo que finalizo me questionando o silêncio de nossa sociedade sobre as barbáries dos órgãos de segurança, e também de nossa comunicação pública federais e estaduais que em seus órgãos veicularam com excessiva timidez as operações que estão barbarizando as comunidades periféricas dos estados citados e voltarão a fazer vitimas no futuro próximo, hoje, logo depois de amanhã.
*Richard Santos também conhecido como Big Richard é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, pioneiro da cultura Hip Hop no Brasil. É membro do RESPEITAR Centro de Referência em governança para a equidade, antidiscriminacao e sustentabilidade social. Está lançando seu novo livro “Mídia, Colonialismo e Imperialismo cultural. Selo Pensamento negro Contemporâneo. Editora Telha.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse