A conta não fecha

Torres contradiz depoimento de ex-diretor da Abin ao negar que recebeu alertas sobre os atos golpistas

Os alertas foram emitidos em um grupo no qual estavam representantes da secretaria de Anderson Torres

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Anderson Torres na CPMI do 8 de Janeiro - Bruno Spada/Câmara dos Deputados

O ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, contradisse o ex-diretor adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Saulo Moura da Cunha, em depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, nesta terça-feira (8).  

Torres afirmou à comissão que não recebeu nenhum alerta sobre o risco de atos golpistas praticados por bolsonaristas. No entanto, em 1º de agosto, Cunha confirmou o envio de alertas sobre a gravidade dos atos golpistas do 8 de janeiro às autoridades responsáveis pela segurança acerca das manifestações. O envio foi feito por meio de um grupo de WhatsApp, onde não houve a confirmação do recebimento de mensagens. “As 48 agências têm o compromisso de estar a par. Não tenho como dizer se o Ministério da Justiça leu os alertas ou não. Nós não temos o controle dessa cadeia”, afirmou Cunha.   

::Ex-Abin diz que GSI foi alertado sobre ameaça de golpistas no 8/1 'em grupo de WhatsApp'::

Estavam no grupo representantes de 48 órgãos, inclusive da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, cuja responsabilidade era de Anderson Torres. Além de integrantes da pasta, estavam presentes representantes da assessoria de inteligência do Ministério da Defesa, dos centros de inteligência das três Forças Armadas, da Secretaria de Operações Integradas (SEOPI) do Ministério da Justiça e da Coordenadoria de Avaliação de Riscos do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). 

“Viajei de férias com a minha família para os Estados Unidos no dia 6 à noite após aprovar o PAI [Plano de Apoio Integrado] e enviar para todos os envolvidos. Não recebi qualquer informação sobre a possibilidade de atos violentos no dia 8. Esta viagem foi programada com antecedência e as passagens compradas em 21 de novembro. Comuniquei ao governador sobre a minha viagem e Fernando de Sousa Oliveira que ficaria responsável pela secretaria em minha ausência. Se eu tivesse recebido qualquer alerta ou informe de inteligência indicando risco iminente, não teria viajado.” 

Incompetência da PMDF, vinculada à Secretaria de Torres

A relatora da comissão, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), enfatizou que o serviço de inteligência apresentou alertas aos quais a secretaria de Anderson Torres tinha acesso, ainda assim “nada foi feito”. “O senhor sai do país dois dias antes, sendo que entre 2 e 8 de janeiro vários alertas eram enviados. O Saulo, que é da Abin, confirmou que isso ocorria nos grupos. O senhor participava desses grupos, inclusive do grupo difusão, que também recebeu esses alertas. O senhor sai do país como secretário de Segurança Pública do DF, que tem a responsabilidade da ação ostensiva em relação à Praça dos Três Poderes, por meio da Polícia Militar do DF”, disse Gama. 

Segundo o depoimento da coronel Cíntia Queiroz de Castro, da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), o efetivo policial no dia 8 de janeiro foi reduzido pela metade. A subsecretária de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do DF fez a afirmação durante depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Legislativa do Distrito Federal (DF), que também investiga os atos golpistas, em abril deste ano. 

::CPI: Ex-comandante admite erros da PMDF no dia 8 de janeiro::

A atuação insuficiente da PMDF também foi relatada pelo coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, ex-chefe do Departamento Operacional da corporação, em depoimento à CPMI, em 26 de junho deste ano. Ele disse que não estava trabalhando no dia dos atos golpistas, nem participou dos planejamentos das autoridades para a data. "Fiquei sabendo dos planejamentos quando já estava preso", afirmou Naime. "Estava de licença, porque estava doente. Tirei licença para fazer exames, estava pré-diabético." Ele foi preso em 7 de fevereiro deste ano suspeito de se omitir no enfrentamento e colaborar com os atos golpistas.

Segundo Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, faltou o compartilhamento de informações prévias e em tempo real entre as forças responsáveis, bem como a construção de um planejamento em comum.

“Claramente tinham poucos policiais. Havia policiais tirando foto e havia policiais escoltando os manifestantes até a Praça dos Três Poderes. O envolvimento do governo do Distrito Federal através de suas autoridades da Polícia Militar é evidente", afirma Souza.

::Comandante da PM responsabiliza DOP pelo baixo efetivo de policiais no dia 8 de janeiro::

A suspeita de omissão ficou ainda mais evidente após se tornar público o relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), com diversos alertas sobre a possibilidade de atos violentos. "Conforme a ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres], houve aumento do número de fretamentos de ônibus com destino a Brasília para este final de semana. Há um total de 105 ônibus, com cerca de 3.900 passageiros", diz outro trecho do documento.

Plano de Apoio Integrado  

Em 6 de janeiro, dois dias antes dos ataques, ocorreu uma reunião na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal com o objetivo de desenvolver o Plano de Apoio Integrado (PAI), que visava abordar possíveis manifestações violentas por meio da PMDF. No encontro estavam representantes dos seguintes órgãos: PMDF, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Detran, DF Legal, o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o STF, o Ministério das Relações Exteriores e o Departamento de Estrada e Rodagens. 

“Nesta reunião, todos os presentes assinaram os compromissos de cumprir as diretrizes do planejamento. Até dia 6 à noite, eu não tive qualquer informação oficial indicando que haveria ações radicais no dia 8. Mesmo assim, o PAI seria colocado em ação nos seus mínimos detalhes. Esta foi a determinação. Cabe ressaltar que se o protocolo fosse seguido à risca seriamos poupados dos lamentáveis atos de 8 de janeiro”, afirmou Torres. “O que posso afirmar com toda segurança é que houve falha grave na execução do PAI. Se tivessem cumprido à risca o plano, os atos de vandalismo não teriam sido consumados.” 

O PAI estabelecia a necessidade de realizar bloqueio e revista dos participantes da manifestação próximo ao Buraco do Tatu, localizado na área da Rodoviária do Plano Piloto. Isso ocorreria no ponto em que o Eixo Monumental deixa de ser exclusivamente uma rota associada aos órgãos de poder de Brasília, passando a se transformar na Esplanada dos Ministérios e, posteriormente, culminando na Praça dos Três Poderes. 

Segundo o depoimento do então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Gonçalves Dias, à CPI do DF, o bloqueio foi feito, mas a revista, não. “Os manifestantes romperam o cordão de isolamento da PM e impediram a revista. Deveria existir, depois dali um bloqueio total que impedisse o acesso à Alameda das Bandeiras e à Praça dos Três Poderes, e ele aparentemente não existiu, ou foi tênue e inexpressivo”, disse. “Na avenida em frente do Palácio, a resistência da PMDF foi vencida. A partir de então, passaram a agir como se tivessem uma coordenação e atuaram como se fossem cercar o Palácio.”   

Prisão 

Pouco tempo depois do início dos ataques, ainda no mesmo dia, Torres foi exonerado do cargo. Em 14 de janeiro, o ex-secretário foi preso no 4º Batalhão da PMDF. Em 11 de maio foi solto e passou a ser monitorado por tornozeleira eletrônica e cumpre medidas cautelares. As restrições impostas incluem a proibição de manter contato com outros investigados no caso, de acessar as redes sociais e de se ausentar do Distrito Federal. Além disso, deve permanecer em casa durante a noite e aos fins de semana. 

Segundo Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Torres demonstrou conivência e omissão em relação aos atos golpistas. De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), as informações obtidas até o momento sugerem que Torres teria falhado, no mínimo por meio de omissão, em cumprir as responsabilidades do cargo de secretário de Segurança Pública do Distrito Federal.   

A PGR relata que, diante de mensagens em um grupo de WhatsApp e imagens que indicavam que os invasores estavam coletando materiais para usar como proteção durante o trajeto pela Esplanada, o então secretário somente deu a ordem para impedir que chegassem ao Supremo, em vez de determinar que as tropas sob sua autoridade evitassem qualquer avanço na Praça dos Três Poderes. À CPMI, Torres afirmou que deu a ordem para o secretário em exercício para impedir que os manifestantes chegassem ao Supremo, uma vez que o Planalto e o Congresso já estavam invadidos. 

Também pesa contra Anderson Torres aquela que ficou conhecida como a "minuta de golpe", uma proposta de decreto destinada ao então presidente Jair Bolsonaro (PL) com o objetivo de instaurar um estado de defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para reverter ilegalmente o resultado da eleição vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O documento foi encontrado quatro dias antes de Torres ser preso, em 10 de janeiro, pela Polícia Federal (PF) em sua residência.   

A minuta foi incluída na investigação do TSE por ataque de Bolsonaro ao processo eleitoral durante reunião com embaixadores, que resultou na inelegibilidade do ex-presidente. Ao incluir o documento, o ministro do TSE, Benedito Gonçalves, afirmou que a inclusão "converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação". 

Sobre o decreto golpista, Torres classificou o documento como uma “fantasiosa minuta, que vai para a coleção de absurdos que constantemente chegam aos detentores de cargos públicos”. “Basta uma breve leitura para que se perceba ser imprestável para qualquer fim, uma verdadeira aberração jurídica. Esse papel não foi para o lixo por mero descuido”, disse o ex-secretário do DF. 

Edição: Vivian Virissimo