Há bastante tempo, as forças de direita no mundo e no Brasil, liberais ou fascistas, se valem do amplo uso da cultura e das artes para dominação e construção de uma hegemonia ideológica. O termo "guerra cultural" acabou se popularizando no governo Bolsonaro no Brasil para designar seu diário combate a um fantasioso "domínio cultural comunista" formado basicamente por professores, universidades e artistas. O fato é que essa guerra existe, é permanente, mas é empreendida efetivamente pelo capital. Quando falamos desse domínio ideológico, pensamos em grandes filmes de propaganda como Independence Day ou semelhantes. No entanto, o poder dessa ação acontece fundamentalmente na criação de grandes narrativas de vida, na geração de sonhos e desejos, como também de modos de se viver, em larga escala, com uma estrutura robusta e através de múltiplos produtos.
A dominação que o capital exerce culturalmente se dá, no mundo ocidental e no Brasil, em uma dupla frente: trata-se por um lado de criar toda sorte de explicações sobre a vida socioeconômica de suas sociedades, centradas em narrativas de méritos, competências, heroísmos e conquistas, criando estilos de vida, sonhos e projetos - todos intimamente ligados à criação de um mundo de desejos materializados pela forma-mercadoria. E, em outra frente: invisibiliza toda engenharia de dominação que ele exerce na sociedade capitalista: a exploração do trabalho; a mais-valia; a hierarquia social; a miséria fruto da expropriação capitalista; e seu correlato, a acumulação advinda disso. É como se tudo isso não existisse, uma vez que na vida simbólica, esses assuntos inexistiriam.
:: Angela Davis e Gina Dent lançam livro sobre abolicionismo em penitenciária de Salvador ::
Contudo, como é possível invisibilizar esses instrumentos de dominação, uma vez que não há censura estatal? Por que as pessoas não cantam, filmam ou escrevem artisticamente sobre isso de modo massivo?
A resposta é sobre o método: financiando a cultura que lhe interessa – sendo, por assim dizer, um "empregador" de artistas, e criando na sociedade, a partir disso, uma categoria de artistas bem-sucedidos –, o capital evidencia tudo que não trate desses temas, elevando assim no tecido social os paradigmas a serem seguidos e os assuntos (e as formas) a serem tratados culturalmente. É, pois, através do financiamento e suporte da arte que, no longo prazo, vão se selecionando artistas, temas e estéticas e os colocando em evidência, mas somente aqueles e aquelas que não entram em conflito com o status quo.
É então, através desse fomento à produção artística que o capital atua. Essa dominação é tão alastrada e difundida que se "naturaliza", alcançando seu objetivo máximo: tornar-se imperceptível, possuir uma aparente normalidade e liberdade, tudo para influenciar corações e mentes, de modo invisível.
Praticamente todos os grandes capitalistas, como banqueiros, mineradores, agronegociantes, empresários do comércio e da indústria, exercem seu "poder suave" estabelecendo financiamentos diversos no terreno cultural, em todas as linguagens. Centros culturais do Itaú, teatros Santanders e de Seguradoras Porto Seguro, Serviços Sociais dos empresários do Comércio, da Indústria; Fundações Ford, Inhotim de mineradoras, Fundações Roberto Marinho, Leis Rouanet (que segue estritamente essa mesma lógica), entre muitas outras instituições, derramam milhões (embora ínfima parte perto de seus lucros) na área cultural, distribuindo dinheiro para artistas que eles possuem interesse. Fundamentalmente reforçando assim narrativas liberais e ocultando aquilo que pode ser nocivo à existência de sua natureza exploradora. Tudo isso sob uma aparente liberdade.
:: Festa na Maré e lançamento de fotobiografia celebram os 44 anos do nascimento de Marielle ::
Há no Brasil, com isso, toda uma camada artística, muito respeitável, formada por esses financiamentos. Dos mais eruditos e experimentais até os mais populares. Uma camada que durante anos, teve como única esperança de estabilidade financeira o dinheiro dos empresários e dos banqueiros, e assim, sem perceber, produziu uma cultura que não fala do capital. Em suma, o que todos têm em comum é: não opinam sobre o coração do sistema – seu caráter explorador e sua engenharia de expropriação e dominação. Se opinarem, e principalmente, forem populares nisso, são com o tempo descartados.
Essa estratégia, entretanto, é modulável e varia em cada contexto histórico. O capital permite que em uma arte experimental e pouco acessível o artista fale sobre o que quiser, posto que inofensivo em termos de massa. Contudo, para um artista popular, o limite de assuntos e opiniões é muito mais estreito, seja qual for a linguagem artística. Nunca veremos um sertanejo ser promovido com músicas que ataquem à escravidão no campo, por exemplo, ou uma telenovela que fale contra a mais-valia. Há ainda uma outra forma: toda sorte de causas e reivindicações que não passam pelo centro do problema, são absorvidas por essa estratégia liberal, que está constantemente atenta às tendências sociais, mesmo que às vezes isso se choque com as pautas de uma outra direita mais conservadora. Assim foi com os feminismos, com a luta dos movimentos negro e LGBTQI+ e mesmo com a causa ambiental. Não falando de luta de classes, são assuntos mais que bem-vindos. Devidamente despolitizados, são novos produtos e novos públicos a serem colonizados.
Há muito tempo que os artistas e suas obras alcançaram, não sem grandes contradições, o status de influenciadores do debate público. E por isso foram ou perseguidos, silenciados, e mesmo assassinados ou cooptados e contratados por reis, papas e capitalistas. Esses trabalhadores chegaram nesse lugar como personagens privilegiados pela característica mesma de sua produção: operam construindo não apenas discursos racionais, mas criando produtos geradores de empatias e afetos (e isso é levado a máxima potência em tempos de redes sociais). O impacto dessa atuação, eminentemente de risco, é rigorosamente administrado pelo capital, como vimos, com sua engenharia de guerra cultural invisível, selecionando artistas, fomentando e criando as mais diversas estruturas de difusão do que é de seu interessante.
:: Sem livrarias, sebos são principal fonte de acesso à literatura no Vale do São Francisco (PE) ::
Desde que dominou o mundo ocidental, o capitalismo nunca deixou essa categoria de produtores sair de suas mãos. Como diria uma anedota sobre Roberto Marinho que dizia que de Dias Gomes e de seus comunistas, ele "cuidava". Mas conhecendo essa estrutura de dominação, podemos saber melhor como lidar com ela. E como lidar com eles. Pois é chegada a hora desses trabalhadores-artistas entenderem o poder que possuem e criar estruturas de classe para fomentar e difundir todo o seu poder.
*Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires