Em meio a milhares de hectares de monocultivo do agronegócio no Mato Grosso do Sul, famílias Guarani Kaiowá resistem sob diferentes formas de ataques e violações. Lutam pelo direito de ser e também o de plantar e colher. Alcançar a soberania alimentar e espiritual nesse contexto é um desafio que só encontra perspectivas no coletivo, quando braços são dados.
Essa é uma das propostas do projeto Sementes de Solidariedade, experiência de compartilhamento de mudas e sementes crioulas e implantação de hortos medicinais de camponeses do Rio Grande do Sul que, na última semana do mês de julho, chegou a áreas de retomadas do povo Guarani Kaiowá da região de Dourados, no Mato Grosso do Sul.
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Em sua terceira edição, a campanha Sementes de Solidariedade, ação do Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ) e organizações aliadas, vai atender diretamente 2.250 famílias em 89 comunidades e 53 municípios do Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul.
A ação visa contribuir com a soberania alimentar, genética e de conhecimento de comunidades quilombolas, indígenas, camponesas e periféricas. Entre os quais está o povo Guarani Kaiowá, que já viveu com abundância, mas há décadas é privado de terras para desenvolver seu modo de ser, hoje enfrentando pobreza, fome e doenças devido ao uso de agrotóxicos e à violência.
Conforme o técnico do ICPJ e dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Darlan Gutierres, nesta ação foram “entregues e devolvidas” 1,9 tonelada de sementes crioulas e mudas, que viajaram dois dias para chegar do Rio Grande do Sul ao Mato Grosso do Sul.
“Levamos diversas variedades de milho, feijão, arroz sequeiro, amendoim, hortaliças e cucurbitáceas, além de mais de 50 variedades de plantas medicinais e mudas de bambu, totalizando 140 mudas para fomentar a saúde preventiva e o artesanato nos territórios dos Kaiowá”, conta.
Entregas simbólicas foram realizadas, entre os dias 26 e 28 de julho, nas tekohas (em guarani significa “lugar onde se é”) Guapoy Mirin Tujury, no município de Amambai; Kurupi, em Naviraí; Laranjeira Nhanderú 1 e Laranjeira Nhanderú 2, em Rio Brilhante; Ñamoy Guaviray, em Caarapó.
A maior parte das sementes e mudas, no entanto, ficou em pontos de armazenamento em território indígena e será compartilhada em 18 das mais de 50 retomadas Guarani Kaiowá.
O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno, informa que a próxima etapa do trabalho de distribuição e plantio junto aos Guarani Kaiowá terá o acompanhamento da Via Campesina, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Tudo em diálogo com a Aty Guasu, assembleia geral do povo Guarani Kaiowá.
Sementes alimentam o corpo e a luta
A tekoha Kurupi foi uma das que receberam sementes e plantas medicinais. Ali vivem cerca de 40 famílias em condições precárias, acampadas na beira da BR-163, à espera do andamento do processo de demarcação. Este ano, as famílias foram expulsas de uma retomada de avanço no território e tiveram seus barracos e casa de rezo destruídas em ação de funcionários de fazenda que tem a posse da área e da Polícia Militar.
Liderança da retomada, Valdir Martins afirma que a chegada das sementes “vai dar um belo começo” para o território Kurupi, “para ajudar a plantar e para nós termos esse início da plantação”. Segundo ele, o que a retomada mais precisa agora são sementes e mudas “pra poder reflorestar alguma parte que foi destruída”, afirma. O plantio contribui tanto para soberania alimentar quanto para o fortalecimento da retomada.
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Outra tekoha beneficiada foi a Laranjeira Nhenderú, que há anos faz o enfrentamento pela retomada do território tradicional, com destaque para a participação de mulheres e jovens. No local, que na edição anterior do projeto recebeu sementes e mudas, é possível verificar os frutos da ação. Pomares e roças mantém-se em pé, próximos à casa de rezo que também foi incendiada, em 2020, mas hoje está reconstruída. A produção contribuiu para amenizar a fome em outros territórios durante a pandemia e sobraram sementes para novos plantios.
“A gente veio em busca das nossas terras, para poder alimentar nossas crianças, para ter mandioca e para ter o nosso próprio alimento”, comenta Lucine Barbosa, liderança da retomada onde além da entrega foi implantado um horto medicinal. Agradecida pela ação, afirma ser importante o apoio coletivo “para ter planta de volta, replantar nossas plantas medicinais, porque tão longe a gente busca uma planta para as nossas crianças.”
Camponeses devolvem aos povos originários
Ao usar o termo “devolvidas” para falar da entrega, Gutierres aborda um dos mais relevantes pontos do projeto. Confinados em reservas indígenas no período da ditadura militar pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os Guarani Kaiowá acabaram perdendo muitas de suas sementes originárias. Reféns das sementes transgênicas, que impedem o replantio no ano seguinte, são privados de sua soberania alimentar.
Contrapondo-se a essa realidade, comenta o dirigente do MPA, “os camponeses ‘guardiões de sementes e mudas’ e as organizações sociais semearam, cuidaram, multiplicaram, colheram, beneficiaram, e através do gesto de solidariedade as destinaram aos povos indígenas Kaiowá”.
Com a experiência de visitar cinco áreas de retomadas para realizar a entrega simbólica de sementes, mudas e plantas medicinais, o dirigente ressalta a dura realidade encontrada. “Muita pobreza, em especial nas retomadas, uma falta de apoio e incentivo do poder público local, não tem água, não tem luz, não tem estrada, os desafios são muito grandes. É inadmissível que, num estado como o Mato Grosso do Sul, cercado pelo grande latifúndio, ainda tenham pessoas passando fome”.
Por isso, o técnico do ICPJ destaca que as sementes carregam “esperança, resistência e autonomia”. E esse trabalho com as sementes crioulas, segundo ele, sempre esteve junto, desde o nascimento do MPA e do ICPJ. “Através deste caminho se agregam sabedoria milenar, experiência, cultura, mística e biodiversidade, em resultado prático no cotidiano da vida camponesa”.
Semear o futuro
O coordenador do Cimi destaca a relevância da ação para o processo de luta de liberdade dos territórios de retomada, onde famílias em busca de um mínimo de condições de vida iniciam plantios e constroem suas casas em terras que já deveriam ter sido demarcadas, mas estão sob posse de latifundiários, tomadas por soja ou milho. “É muito amplo e muito profundo, desse processo do alimento eles também estabelecem a cultura, o contato com os seus processos, com seus encantados”, comenta.
Esse fortalecimento abre a possibilidade “de hoje eles enfrentarem problemas históricos, como o processo da fome”. Por isso, avalia que o Sementes de Solidariedade é um exemplar que precisa despertar um engajamento nacional de todos os “pequenos”, para unificar em um projeto de apoio aos povos indígenas.
“A semente chega no contrapé de tudo que eles têm. O que eles têm? Eles têm a bala do agronegócio, eles têm o massacre, eles têm os tratores quebrando suas casas e eles têm a expulsão do território. E quando chega essa semente simbolizando esse fortalecimento de tudo que eles querem, tudo que eles pleiteiam, é bonito ver os sorrisos”, afirma.
Contaminação por agrotóxico
Um dos trabalhos realizados junto aos Guarani Kaiowá por Maria Leda Vieira de Sousa, do Cimi – Regional Mato Grosso do Sul, é a implantação de agroflorestas em retomadas. Ela destaca o quão fundamental é a espiritualidade para esse povo, e como isso está relacionado com a natureza e as plantas. “Compreendi com os Guaranis Kaiowá que sem a floresta não é possível ter vida. Alguns dizem que sem água não tem vida, mas sem floresta não tem água e sem água não tem vida”.
Ela aponta outro grave problema na região, a contaminação da água, do solo, do ar e dos seres vivos por agrotóxicos. “São muitas crianças nascendo com deformidade, são muitas crianças com problemas de autismo e outros desequilíbrios emocionais e psicológicos”, conta. “Se a semente humana não pode germinar, como é que existirá planeta Terra no futuro?”, questiona.
Resgate da medicina tradicional
Uma novidade nesta terceira edição do Sementes de Solidariedade foi a implantação de hortos medicinais, a partir do conhecimento do Frei Wilson Zanatta, que ao longo dos últimos 25 anos tem se dedicado a estudar o tema e sistematizar os saberes a respeito da saúde através das plantas e os benefícios de uma alimentação saudável. A ação levou plantas e promoveu oficina seguida de plantio de um horto medicinal na tekoha Laranjeiras Nhanderú 2.
“Nós trouxemos ervas medicinais para trabalhar a fitoterapia com os indígenas”, conta o frei capuchinho. “Fizemos um horto com eles, com ervas que a gente trouxe lá do Sul, em torno de 50 variedades de mudas, para que os indígenas possam ter saúde através da fitoterapia, que era e continua sendo, embora de uma forma um pouco perdida ultimamente, onde eles se tratavam, se curavam através do remédio caseiro da fitoterapia”, completa.
Zanatta relata que, conversando com os indígenas, percebeu que houve uma perda da cultura tradicional devido ao avanço do agronegócio sobre matas nativas. “Junto com as matas também foram os remédios. Mas ao falar, ao mencionar, ao refletir com eles, eles se entusiasmaram, recordando quantos remédios que eles tinham. Eles fizeram o horto com muita alegria, a gente percebe o amor, o carinho que eles têm com as ervas e com a fitoterapia”.
A ação também compartilhou receitas. Foram deixados diversos livros sobre saúde e a cura com a natureza editados pelo ICPJ. Para o frei, a experiência foi uma bonita troca com os indígenas, onde foi possível ensinar algumas coisas e também aprender com a sabedoria dos Kaiowá. “A natureza faz parte da vida deles. Eles não conseguem viver sem esse contato com a terra. Tirando a terra deles, se tira a alma deles, se tira o espírito deles”, entende. “É importante resgatar tudo aquilo que é natural, aquilo que Deus fez”, complementa.
“Avançar para um mundo melhor”
Além das entidades citadas anteriormente nesta matéria, integram ainda o projeto, em suas mais diferentes fases de execução, um conjunto de associações e organizações que estão vinculadas a esses movimentos. Entre elas Cáritas Brasileira, Cooperativa Arpa Sul, Cooperfumos, Cooperbio, Coptil, Bionatur, Coopsat, Arquidiocese da Campinas, Diocese de Dourados, Instituto Koinós, Missionszentrale Der Franciskaner, bem como amigos e amigas que têm contribuído de forma voluntária e anônima com as ações da campanha.
Gutierres afirma que todas as organizações envolvidas defendem um projeto de vida. “Ou seja, aquele projeto que tem como base a agroecologia, a biodiversidade, a sustentabilidade social e a solidariedade, acima de tudo, contra o projeto de morte, o projeto hegemônico, aquele que mata, aquele que destrói as vidas, destrói a natureza, destrói o meio ambiente.”
Na sua avaliação, não é uma ação apenas assistencialista, mas rompe com o “ciclo de dependência induzida, ampliando a autonomia e promovendo a emancipação”. Além disso, traz “unidade política, programática e prática dos sujeitos sociais e institucionais envolvidos na sua construção”.
“Com a ajuda solidária de muitas entidades, amigos e amigas chegamos até aqui e seguiremos teimosamente avançando e construindo um mundo melhor”, afirma, deixando o convite a todos e todas para se envolverem neste processo.
O ICPJ e demais parceiros ainda têm expectativa de ampliar as ações da campanha Sementes de Solidariedade. Para isso buscam agregar mais aliados através de doações de qualquer valor, que podem ser encaminhadas através do PIX 06942198000109 (CNPJ do ICPJ).
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Rodrigo Chagas e Katia Marko