Saber com precisão, e de forma inédita, o número exato de comunidades quilombolas existentes no país é uma grande vitória para o movimento que possui demandas históricas e geográficas de reparação. E quando os dados são captados e analisados por uma instituição renomada nacionalmente e internacionalmente, como o IBGE, o sentimento de ter um olhar realista destas comunidades enche de esperança líderes, defensores, ativistas e pesquisadores sobre o tema.
Não é somente a quantidade de pessoas vivendo nestes lugares, mas também suas necessidades, um raio-x por região. A esperança de dias melhores tende a acontecer, pois, com base nas estatísticas, mais políticas públicas poderão ser aplicadas e direcionadas, com resultados práticos e eficazes. Pelo menos é o desejo de muitos.
Para os estudiosos do tema, o Censo Quilombola é uma forma do Estado brasileiro entender o racismo estrutural e institucional. “Estamos falando de luta, preservação, resistência e de modos de viver e pensar coletivamente a comunidade e a terra. E isto tanto em um contexto rural como urbano”, completa a geógrafa, professora e pesquisadora Cláudia Luísa Zeferino Pires, uma das organizadoras do Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, lançado em novembro de 2021. Desta forma, na opinião da geógrafa, os números poderão dar suporte no avanço das próprias pesquisas do IBGE, o que fica e quais serão os próximos passos.
:: Rio Grande do Sul tem 17.496 mil quilombolas, aponta mapeamento inédito do Censo 2022 ::
Políticas públicas
O IBGE atende a uma demanda histórica da sociedade brasileira, dos órgãos governamentais e dos movimentos sociais. “Conhecer o número de pessoas quilombolas e como elas se distribuem pelo país e municípios vai orientar políticas públicas de habitação, ocupação, trabalho, geração de renda e regularização fundiária”, declara Marta Antunes, responsável pelo Projeto de Povos e Comunidades Tradicionais do Instituto.
A deputada estadual e presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento gaúcho, Laura Sito (PT), argumentou que, a partir do momento que esse grupo de pessoas são incluídas nas estatísticas mais importantes do Brasil, estamos, finalmente, levando cidadania para elas.
“Além disso, é possível pensar na garantia de direitos básicos, como assegurar o reconhecimento e a titulação dos seus territórios, mas, também, na valorização cultural, segurança alimentar e direitos à saúde e a educação quilombola de qualidade para crianças e jovens”, diz.
Na sua opinião, o Brasil e o Rio Grande do Sul têm a chance de se reconstruir e, para isso, é necessário estarmos atentos a todos os cantos e a toda a nossa população. Esse é o início de um grande movimento, de quem tem muitas dívidas históricas para sanar.
Deputada federal e socióloga, Reginete Bispo (PT/RS) também celebra a divulgação dos dados. “É fundamental garantir a segurança jurídica das comunidades quilombolas em relação aos seus territórios. Continuaremos lutando pelo fortalecimento e valorização destes espaços no Brasil, e, em especial, no Rio Grande do Sul.”
:: Brasil tem mais de 1,3 milhão de quilombolas; quase 90% estão em territórios não titulados ::
O Censo também levou os ativistas a outras reflexões. Coordenador estadual do Movimento Negro Unificado, Felipe Teixeira afirma que o racismo afetou o povo negro, invisibilizando sua história e existência. Outro ponto é a comprovação da falsa narrativa da abolição como fruto da benevolência da Princesa Isabel e uma concessão da elite branca brasileira. “O que aconteceu foi fruto de muita luta e resistência do povo negro, e o número de quilombos e quilombolas comprova isto”, afirma.
Segundo o ativista, o movimento negro está certo em lutar por políticas públicas efetivas para as comunidades quilombolas, não só pelo seu direito constitucional, mas porque estes espaços possuem um grande potencial de desenvolvimento, seja a partir da produção de alimentos e cultural, inclusive como polo de turismo. “Além é claro de resgatarmos a verdadeira história do Brasil. Este Brasil que como sempre dissemos, também é quilombola”, complementa.
Mais autonomia
Agente cultural, educador popular, defensor de direitos humanos, ambientalista e participante do Movimento Quilombola do Ceará, João do Cumbe reforça que os dados do IBGE chegam em um período bastante conturbado com o crescimento da extrema direita.
Um dos pontos destacados por ele é a questão fundiária e o acesso ao território. “Desta forma, poderemos decidir que atividades desenvolver, as áreas destinadas à preservação, agricultura, criação de animais, construção de escolas, postos de saúde”, diz ele.
João salienta que é preciso tirar da invisibilidade homens, mulheres, jovens e crianças afrodescendentes. “E entender o quilombo como um espaço de resistência, cosmovisão e ancestralidade. Do bem viver, e não no tempo da colonização, um lugar de ameaça. Continuar na luta por liberdade e emancipação, autonomia, direitos e educação escolar. Não somos descendentes de escravos e sim de seres humanos que foram escravizados e que não aceitaram as condições que lhes eram impostas.”
Outras críticas
Integrante do IACOREQ (Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos), Ubirajara Carvalho Toledo, afirma que, pelo fato de ser o primeiro, o Censo precisa de alguns aprimoramentos. “Mas já fica apontado que nós temos um baixo índice de territórios titulados. É um compromisso do Estado brasileiro para trabalhar as políticas de reconhecimento e de regularização fundiária das comunidades quilombolas. Precisamos avançar, mas já demos um passo importante”, reforça.
Na opinião do advogado e Membro da Frente Quilombola/OLPN-RS, Onir de Araújo, o censo está incompleto. Para ele não existe diferença sobre o contexto rural ou urbano. “Cumpre ainda destacar que a Academia e o Movimento Quilombola já vêm há mais de 20 anos trabalhando nessa cartografia e, apesar da importância dos dados levantados e apurados nessa versão inaugural, parcela significativa dessa população ficou de fora”, avalia.
:: Confira série especial do Brasil de Fato RS sobre os Quilombos Urbanos de Porto Alegre ::
Segundo ele, no Rio Grande do Sul, conforme dados da Superintendência do Incra seriam 134 Comunidades Quilombolas no Estado, com 108 processos abertos para regularização fundiária na autarquia. O Atlas da presença Quilombola em Porto Alegre, lançado em 2021 pelo Núcleo de Estudo Geografia e Ambiente da Geografia da Ufrgs com dados de 2020 a partir de nove dos onze territórios Quilombolas de Porto Alegre aponta uma população estimada de 2.900 pessoas e 700 famílias e a grande maioria territorializada.
“É importante que o IBGE busque novas complementações desses dados, aprofundando a relação com as comunidades quilombolas e aperfeiçoando a metodologia para se aproximar ao máximo da realidade dos territórios, marcados por cinco séculos de desrespeito e violência e exclusão.”
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko