O Brasil tinha, no fim do ano passado, população prisional de 832 mil pessoas. A esse total foram acrescidos cerca de 1,5 mil homens e mulheres nos presídios da Papuda e da Colmeia, ambos em Brasília, no dia seguinte aos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. Esse grupo parece ter mudado radicalmente a percepção da extrema direita sobre direitos humanos nos cárceres, mas uma mirada mais ampla não autoriza essa conclusão.
A trajetória do deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) é um bom exemplo. Há uma semana, ele integrou comitiva de parlamentares bolsonaristas em viagem ao exterior. O objetivo era internacionalizar a luta em defesa daqueles que são considerados presos políticos pela extrema direita e entregar ao Comitê de Direitos Humanos da ONU documento acerca de supostas violações sofridas pelos denunciados pelos crimes de associação armada, tentativa de abolição violenta da democracia e de golpe de Estado.
O deputado começou a alimentar seus seguidores com uma live antes do embarque no aeroporto de Guarulhos, mas a falta de intimidade com o tema talvez justifique sua viagem com destino a Nova York – o Comitê de Direitos Humanos da ONU fica, na verdade, em Genebra, na Suíça.
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Em 2014, o ainda desconhecido Marcel van Hattem tentava uma vaga na Assembleia Legislativa gaúcha pela terceira vez. Durante uma atividade de campanha no Parque da Redenção, em Porto Alegre, ele cruzou com a petista Maria do Rosário, empunhou seu megafone e disparou hostilidades à deputada federal. “A senhora nos envergonha, porque a senhora defende bandidos”.
Seu vídeo viralizou no YouTube e, assim, ele teve seu primeiro mandato estadual. Pois foi em 2014 que repercutiu a expedição de medida cautelar pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) contra a violação de direitos no Presídio Central, em Porto Alegre. A CPI do Sistema Carcerário já havia escolhido o Central como o pior presídio do país em 2008.
Um de seus projetos propôs que os presos indenizassem o erário – com dinheiro, se tivessem, ou com trabalho – pela “estadia” em prisões como o Central. Embora inútil, cínica e perversa, a ideia foi um sucesso junto a seu eleitorado e ele se tornou o deputado federal gaúcho mais votado em 2018.
Inútil porque é inconstitucional, pois a Lei de Execução Penal (LEP) é federal, além de ser cláusula pétrea vedar trabalho forçado nas prisões. Cínica porque são exceções os estabelecimentos penais onde os presos têm função laboral remunerada. Perversa porque a LEP prevê, antes de indenizar o estado pela “estadia”, que a remuneração recebida pelo preso seja usada, quando possível, para reparar prejuízos sofridos pelas vítimas. Seu projeto não se ocupa de vítimas reais.
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Entre 1990 e 2017, a população prisional brasileira cresceu absurdos 700% e ela continuou aumentando mesmo durante a pandemia de covid-19, embora houvesse recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para diminuir a superlotação. Seu perfil estatístico é de um homem jovem, pouco escolarizado e pobre. Furtos, roubos e tráfico somam cerca de 75% das condenações. Os negros são quase 70% da população encarcerada. A construção de novas prisões não consegue conter o excedente de presos e há muitas pesquisas dedicadas a compreender o complexo fenômeno que implica segurança e sistema penal, bem como seus muitos desdobramentos e custos.
Dos 1,5 mil presos em 9 de janeiro em Brasília, cerca de 250 continuam em regime fechado. Embora não haja estatística conhecida, a julgar pelos vídeos gravados na porta de quartel e dos ataques na Praça dos Três Poderes, seu perfil estatístico é visivelmente diferente: mais velho, mais branco, mais escolarizado e mais situado nos estratos médios da pirâmide social.
“Quem está lá preso, a maioria das pessoas são trabalhadoras de sol a sol, que pagam seus impostos, são pais de família, crentes”, descreveu a advogada gaúcha Gabriela Ritter, presidente da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav), durante audiência pública no Senado. Ela reconhece ter havido invasão e depredação de patrimônio por parte de alguns, que devem ter suas condutas individualizadas e direito à defesa, mas refuta a acusação de tentativa de golpe, um crime pelo qual seu próprio pai foi denunciado. A Asfav elaborou um relatório com as violações de direitos, que é a base do documento levado pela comitiva de aloprados a Nova York. Não tenho dúvida de que ela sofre como filha, embora possa discordar de suas elaborações.
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Nas franjas à esquerda, a cobrança pela punição aos responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro, não raras vezes, confunde-se com vingança social, o que deve ser afastado de juízos sérios e julgamentos justos. Embora seja utópico pensar em um mundo sem prisões, devemos, como já assinalou Angela Davis, pensar mais em noções de restituição e de reparação por parte de quem violou o direito, o que diferencia um “homem mau” do “homem que errou”.
Na extrema direita, infelizmente, a negação da sequência de eventos que antecedem os ataques de 8 de janeiro e seu continuado proselitismo selvagem não contribuem para alcançarmos um futuro sem violações e com respeito por direitos humanos para todos os presos.
* Fábio Carvalho é jornalista e mestre em Antropologia Social.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Rodrigo Chagas e Katia Marko