Coluna

Tudo junto e misturado

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Daqui pra frente, o governo espera negociar e contar com os partidos em bloco e não mais no varejo - Mauro Pimentel/AFP
O cardápio que antes parecia indigesto, foi saboreado como uma sobremesa

Olá, o centrão casa com o Planalto só por interesse e o som do violão de Fernando Haddad embala a lua de mel com o mercado.

.Casamento às cegas. Mais do que comemorar a aprovação da reforma tributária e do Carf, o jantar que reuniu líderes do centrão com Lula na semana passada não apenas pacificou as relações entre o Planalto e o Congresso, como parece ter estabelecido as bases para uma nova fase do governo. O cardápio que antes parecia indigesto, foi saboreado como uma sobremesa: o centrão vai levar a minirreforma ministerial e os cargos que queria, incluindo a Funasa e a Caixa Econômica. De quebra, o governo espera atrair formalmente o PP e o Republicanos.

Daqui pra frente, o governo espera negociar e contar com os partidos em bloco e não mais no varejo. Evidentemente, além da fidelidade sempre suspeita e do apetite inesgotável, aliar-se definitivamente ao centrão trás o risco de escândalos de corrupção no futuro. Mas, nos cálculos do governo, a aliança e a entrada do centrão na base governista faz todo sentido. Primeiro, Arthur Lira e sua turma já demonstraram que sem eles não se aprova nada no Congresso. Segundo, nenhum governo vai para frente sem maioria no parlamento. Terceiro, a estratégia também faz parte das intenções petistas de esvaziar e eliminar o bolsonarismo, assediando sua base eleitoral, seja partidária, sejam as bancadas evangélicas e do agronegócio, que também recebem afagos.

E da parte dos parlamentares, ninguém quer estar em conflito com quem tem a chave do caixa às vésperas das eleições municipais. Ou seja, Lula e o centrão apostam que o futuro será de calmaria na base do ganha-ganha. Com o cenário interno pacificado, Lula vai poder se dedicar a correr o país, inaugurando obras, e a perseguir sonhos mais altos na geopolítica internacional. Além de um projeto de transição energética, Lula deve lançar uma campanha mundial contra a fome. Antes disso, deve pacificar outro conflito, entre os interesses latinos e europeus na cúpula da União Europeia com a Celac. E mesmo que já fale em reeleição, no momento e na intimidade, Lula tem sonhado mesmo é com o Nobel da Paz.

.Picanha, cerveja e violão. Tanto quanto Lula e Lira, quem colheu os frutos da aprovação da reforma tributária e da mudança do voto no CARF foi Fernando Haddad. É verdade que a reforma ainda vai para o Senado, onde os temas polêmicos da negociação anterior serão tratados, como os fundos estaduais que desagradaram parte da indústria, ainda que o setor tenha gostado do que foi aprovado no geral.

O resultado foi tão positivo que Haddad já trabalha para antecipar a segunda parte da reforma, com negociação mais complexa porque envolve mudanças na tributação de renda. Mas não é apenas a relação com o Congresso e a aprovação das reformas que torna a vida de Haddad mais tranquila. Os números da economia seguem melhorando, registrando deflação com a queda dos preços de alimentos e combustíveis e cumprindo uma promessa simbólica da campanha de Lula, a picanha caiu 6,5%. E a melhora na vida dos mais pobres também aparece na recuperação das médias salariais em negociações coletivas.

O setor de serviços teve uma pequena alta e a demanda americana por biocombustíveis pode dar mais fôlego ao agronegócio. O otimismo na economia ajuda inclusive a enfraquecer o bolsonarismo. Segundo o IPEC, uma parte do eleitorado feminino, preto e católico do capitão já está migrando para o lulismo movido pela economia. Aliás, um perfil muito próximo do eleitor de Lula nas últimas eleições. As mudanças ainda não são estruturantes, por isso os olhares se voltam para a indústria.

No futuro, a reforma tributária poderá incrementar o PIB brasileiro em 2,39% e provocar um aumento na produtividade de 1,63%. Sem poder esperar até lá, Lula já sugeriu a repetição da isenção da indústria automobilística para os eletrodomésticos, apostando no consumo. Claro, o fantasma da inflação ainda pode voltar, argumento para Campos Neto se agarrar em sua defesa solitária da taxa de juros estratosférica. Mas até o mercado financeiro, outro intransigente defensor dos juros, anda encantado com Haddad, ajudando a disparar a melhora da imagem de Lula para um setor que nunca escondeu sua preferência por Bolsonaro e Paulo Guedes. Com o vento a favor, Haddad pode pensar no futuro e começar a tirar do papel seu plano de transição para uma economia verde, até aqui escanteado pelos auxílios aos automóveis e energias fósseis.

.O retorno do chiqueirinho. Enquanto o governo comemora, quem não tem vida fácil é Bolsonaro. Acossado por uma coleção de processos no TSE e pelo avanço das investigações da PF, o capitão percebeu que voz embargada e olhos marejados não serão capazes de salvá-lo. Logo à frente, o esperam ainda as quebras de sigilo de Silvinei Vasques, Jean Lawand e Mauro Cid e uma investigação do TCU sobre possíveis irregularidades nos ganhos salariais do ex-presidente. Sem contar os danos colaterais trazidos pelas maracutaias de Carla Zambelli e Damares Alves.

E, por incrível que pareça, neste momento difícil, Bolsonaro só parece contar com o DNA golpista das forças armadas, dispostas a cair junto com seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, e com o corpo mole e a disposição do governo para não se incomodar e tentar manter as desavenças com os militares dentro de casa. A gota d'água no inferno astral de Bolsonaro foi mesmo a divisão dentro do PL, depois que uma parte dos deputados do partido aderiu ao pragmatismo do centrão.

Foi o sinal de que já é hora de parar de fazer beiço, engolir o choro e partir para o ataque. O que, para Eduardo Bolsonaro, significa comparar professor a bandido e fazer palanque para o armamentismo na tentativa de galvanizar novamente a direita em torno do legado do pai. Ou seja, repetir o que foi feito durante quatro anos. A estratégia não deve ser capaz de esvaziar as disputas em torno da sucessão do capitão, mas talvez obrigue os expoentes da direita a manterem uma postura mais ideológica e se afastarem do governo, como Tarcísio de Freitas, que passou a defender as escolas cívico-militares em São Paulo justamente agora que Lula resolveu extingui-las. 

.Ponto Final: nossas recomendações.

.Megafundos financeiros: Abrimos a caixa-preta. No Outras Palavras, como os fundos de investimento estão avançando sobre serviços essenciais como habitação, saúde e energia.

.Como uma promessa da inclusão financeira está empobrecendo o Sul Global. A Jacobin analisa como o capital financeiro enganou mais uma vez o Sul Global com promessas não cumpridas pelo microcrédito e fintechs.

.Imperialismo digital: como IA e a captura de dados mantém o poder entre as grandes potências? Em entrevista ao Brasil de Fato, Deivison Faustino explica como o imperialismo se reproduz no controle de dados na internet.

.O país dos MEI. Infográfico da Piauí detalha a condição dos 8 milhões de trabalhadores por trás de um CNPJ de MEI no país.

.Uber e iFood encomendam pesquisa 'viciada' sobre rejeição da CLT. Na Repórter Brasil, pesquisa da UFRJ revela como plataformas manipulam dados sobre intenção dos motoristas em ter estabilidade.

.Quando me descobri branca. No blog AzMinas da Headline, como a leitura de escritoras pretas ajudou uma pessoa branca a entender seus privilégios.

.Pulmão de pedra. Ensaio fotográfico de Caio Guatelli revela as enfermidades dos trabalhadores em Minas em Ametista do Sul (RS).

.Uma análise feminista da guerra. No Outras Palavras, Silvia Federici analisa a hecatombe econômica, social e política do neoliberalismo a partir do paradigma patriarcal da guerra.

Neste mês, o Ponto completou 5 anos. Desde o início, nossa proposta foi olhar para além das cortinas de fumaça da pequena política e dos ruídos das fake news para entender os fatos relevantes da conjuntura. Muito obrigado a todos e todas que nos acompanharam até aqui. E uma boa forma de fortalecer nosso trabalho é apoiando o Brasil de Fato.
Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Leandro Melito