Práticas abusivas e direitos violados na hora do parto possuem uma denominação: violência obstétrica. Episódios ocorrem e vão parar na Justiça, mas para descobri-los é preciso persistência. Uma das formas é buscar a jurisprudência relacionada ao termo violência obstétrica na base de dados do TJRS. Na consulta ao site, realizada em junho, constavam doze decisões, em segunda instância, com o termo. O número foi confirmado pelo Departamento de Biblioteca e Jurisprudência da corte estadual.
Para as advogadas Isabel Martins e Tatiana Knack, que defenderam mulheres vítimas de violência no parto, uma das principais causas do baixo número não é a falta de ocorrências, e sim a propagação relativamente recente da expressão, além de casos em que as vítimas decidem não ir em frente com uma ação.
“Provavelmente a pesquisa resultou em poucos processos devido ao termo ser novo no meio jurídico, mas os fatos vêm ocorrendo há muito tempo. Acredito que a procura pela denominação ‘danos morais’ e ‘erro médico’ deve encontrar processos antigos que talvez hoje seriam vistos de outra maneira. O que também acontece é que muitas vezes se faz um acordo e o processo nem chega na segunda instância. Há também casos que não chegam ao conhecimento público porque as mulheres se sentem tão tocadas que nem chegam a ajuizar ação judicial”, explica Knack.
Isabel Martins, que tem atuado neste tipo de caso, aponta ainda que a expressão é contestada pelos Conselhos de Medicina com o argumento de que a violência obstétrica pressupõe a existência de dolo. Mas ressalta que os Tribunais vêm aceitando mais a utilização do termo. “Mesmo que ainda não exista tipificação criminal, é possível ajuizar ações cíveis, que são processos indenizatórios. Existe uma resistência com o termo porque implica reconhecer um problema social de gênero”, explica.
Desses doze casos, a maioria ainda é de processos em que se discutiu a existência de erro médico durante procedimentos obstétricos e pedidos de indenização por danos morais.
A expressão é realmente recente. Faz apenas nove anos que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a falta de cuidados, abusos, maus-tratos, desrespeito e a negligência à mulher no parto como violação dos direitos humanos. No Brasil, três projetos de lei estão sendo debatidos no Congresso para tipificar criminalmente a violência obstétrica, como será melhor explicado ao longo da reportagem.
Sequência de erros expõe caso de violência obstétrica
Um dos doze processos encontrados no site do Tribunal de Justiça, e que inaugurou a primeira condenação a reconhecer a violência obstétrica no Estado, é o de Caroline, moradora de Pelotas, região sul do RS. O processo nº 0005159.93.2021.8.21.9000 trouxe à tona uma série de falhas graves e condutas inadequadas no atendimento médico prestado à gestante em julho de 2015.
Caroline estava com 40 semanas de gestação quando ingressou na Santa Casa de Misericórdia de Pelotas para trabalho de parto. A partir daí o que se sucedeu foi um “um verdadeiro show de horrores”, segundo Isabel Martins, a advogada dela. Dentre os principais fatos elencados na sentença, está o de que a instituição não disponibilizou médico anestesiologista, nem analgesia durante o parto, conforme prevê as Diretrizes Nacionais de Assistência ao parto normal. O descumprimento fez com que a paciente fosse submetida a dores intensas que poderiam e deveriam ter sido evitadas. Na sentença, consta ainda que a gestante foi internada antes do tempo e não recebeu alimentação adequada por três dias, apesar da prescrição médica existente.
Outro problema apontado foi o uso da episiotomia, técnica que consiste em um corte realizado no períneo da gestante — entre a vagina e o ânus — com o objetivo de ampliar o canal de saída do bebê. A efetividade e a necessidade da prática vêm sendo altamente contestada por especialistas ao longo dos anos. O Ministério da Saúde e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) recomendam que a episiotomia deve ser evitada e não deve ser realizada sem o consentimento da mulher.
Na sentença do processo, é descrita ainda uma falha cometida pelo hospital em relação a equipamentos utilizados durante o parto. Os chamados fórceps, instrumentos cirúrgicos em formato de pinça para facilitar a expulsão da cabeça do feto pelo canal vaginal, estavam embalados de forma que dificultou o reconhecimento dos equipamentos adequados a serem utilizados, o que acabou atrasando o nascimento da criança e gerando transtornos durante o procedimento.
O bebê recém-nascido também foi vítima da violência obstétrica. O menino precisou ser encaminhado à UTI do Hospital Universitário São Francisco de Paula, onde permaneceu entubado durante onze dias e teve alta após um mês. Durante a internação, sofreu episódios de convulsão e, posteriormente, precisou realizar fisioterapia para lidar com as sequelas físicas.
Na sentença de primeira instância da justiça estadual gaúcha, proferida em maio de 2020, o juiz afirma nas suas conclusões que “a violência obstétrica constatada não pode ser relevada em nome da salvação da criança e da parturiente”. Ele acrescenta que os erros infligiram “extrema e desnecessária dor e sofrimento” a Caroline.
O TJ confirmou a sentença em acórdão publicado em abril de 2021. A Santa Casa e o Município de Pelotas pagaram indenização de R$50 mil por danos morais a Caroline e ao filho dela. A médica responsável pelo parto foi excluída do processo por ilegitimidade processual, já que o atendimento foi realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cabendo assim ao ente público responder pelos erros e danos.
‘Na hora de fazer o bebê não gritou. Se tu gritar eu não vou te atender’
“O juiz foi sensível durante a instrução do processo. Foi muito legal que ele reconheceu na sentença esse recorte de gênero”, conta a advogada de Caroline, Isabel Martins.
Em entrevista por telefone, ela explicou a importância em se fazer a diferenciação entre a violência obstétrica e o erro médico. Ela aponta que enquanto a primeira é uma violência de gênero, a segunda pode ser qualquer tipo de negligência ou imprudência. “A violência obstétrica existe justamente por causa da condição de mulher da vítima, e não exclusivamente porque ela está fazendo um procedimento médico. É importante reconhecer o caráter político do termo”, argumenta Martins.
Ela exemplifica a afirmação comparando o tratamento geralmente dado a pacientes homens em comparação com mulheres grávidas. “Se um homem está em uma emergência com apendicite, ninguém fica falando para ele: — ‘para de frescura, cala a boca, está incomodando as outras pessoas. Se você gritar, eu não vou te atender’. Não se banaliza o que o homem está sentindo”.
Ao abordar a discussão de gênero que contorna a violência obstétrica, a advogada traça um paralelo com outra violência sofrida pelas mulheres: a doméstica.
“Existem mulheres ricas que apanham em casa, assim como pobres. Óbvio que, depois da violência sofrida, provavelmente uma mulher com mais capacidade financeira tem mais possibilidades de se insurgir contra o ato. Mas a violência acontece com todas as mulheres, independentemente da classe social a qual ela pertence”.
Entretanto, dentro desse recorte social, ela aponta que é possível notar diferenças entre a violência obstétrica cometida contra mulheres de classes financeiras distintas.
“A mulher que é atendida no postinho de saúde frequentemente acaba escutando frases do tipo: — ‘Na hora de fazer o bebê não gritou. Se tu gritar eu não vou te atender’. Além dessa violência psicológica, há também a física, com o uso da episiotomia, que aumenta a chance de causar infecções. Existem médicos que utilizam a prática porque não querem ficar esperando a dilatação aumentar e a criança nascer”, relata.
Estímulo à cesariana
Em relação às mulheres que são atendidas por plano particular de saúde, a advogada menciona a dificuldade de dar à luz através de parto natural e o direcionamento feito por obstetras para que a parturiente opte pela cesariana, mas sem que todas as informações sejam fornecidas de maneira clara.
A consideração também é feita por Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) há 25 anos e atualmente presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo) da seção RS. Para a professora universitária, a resistência em usar o termo violência obstétrica está vinculada a um conceito de práticas desatualizadas e desaconselhadas desde a década de 90.
“É complicado falar em violência obstétrica em um estado como o RS, onde 64% dos nascimentos são por cesariana. Isso não quer dizer que somos contra a cesariana, pelo contrário. Ela salva vidas. As cesarianas necessárias, não as desnecessárias. A OMS recomenda que em torno de 15% dos nascimentos sejam por cesárea. Abaixo disso eleva a mortalidade e morbidade, e acima disso também. Mas nós temos maternidades no Estado que são 100% cesarianas”. Ela ressalta que o índice de cesáreas nos hospitais privados gaúchos varia de 89% a 92%.
Lei federal para tipificar a violência obstétrica
O conceito de violência obstétrica é amplo. Pode se manifestar no pré-natal, no parto ou no pós-parto, e pode ser cometida não só pelo médico, mas por qualquer membro da equipe que esteja presente no parto. Os atos abusivos podem ser físicos ou verbais. O desrespeito se manifesta desde procedimentos desnecessários e sem consentimento até práticas desaconselhadas, como a episiotomia e a manobra de Kristeller (pressão feita na parte superior do útero, espremendo a barriga da paciente para acelerar a saída do bebê. Atualmente é contraindicado pelo Ministério da Saúde e OMS).
Por carecer de uma regulamentação substancial, a OMS instituiu, em 2014, a violência obstétrica como uma violação dos direitos humanos. Conforme a Agência Senado, o projeto de lei que torna crime a violência obstétrica e estabelece procedimentos para a prevenção da prática no Sistema Único de Saúde (SUS), tramita no Senado. O PL 2.082/2022 prevê pena de até dois anos de prisão para os responsáveis. O PL prevê a inclusão do artigo 285-A no Código Penal. Conforme o artigo, a violência obstétrica deve ser entendida como “qualquer conduta direcionada à mulher durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário, praticada sem o seu consentimento ou em desrespeito pela sua autonomia ou, ainda, em desacordo a procedimentos estabelecidos no âmbito do Ministério da Saúde, constituindo assim uma clara limitação do poder de escolha e de decisão da mulher”.
Além da condenação cível, a defesa de Caroline fez uma representação administrativa contra a médica ao Cremers, mas o conselho entendeu que não houve erro por parte da profissional. “Acabou que não deu em nada. Os conselhos de medicina estão aí para proteger os médicos, e não para fiscalizá-los ou cobra-los. É muito difícil que façam uma nota repudiando atos de médicos”, expõe Martins.
O que diz o Cremers
A reportagem entrou em contato com o Cremers e solicitou um posicionamento a respeito dos motivos de não ter havido punição administrativa contra a médica. “O caso da médica referida foi julgado e a decisão colegiada do Conselho, que faz a análise apenas do ponto de vista ético, é de que não foram encontradas evidências de ilícito ético”, diz a resposta enviada pelo Cremers.
Na segunda reportagem da série sobre violência obstétrica, é revelada a história de uma moradora de Passo Fundo que foi vítima de uma laqueadura não autorizada durante o parto e as consequências do processo judicial movido por ela e pelo marido contra os responsáveis pelo erro.
* Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Extra Classe