As discussões em torno da reforma tributária, aprovada pelo Congresso Nacional na última sexta-feira (7), deixaram em aberto uma série de questões para grande parte da população, entre elas, o que é carga tributária e por que ela precisa passar por uma reforma. O Brasil de Fato conversou com o auditor fiscal Dão Real, do Instituto Justiça Fiscal (IJF), para entender o que está em jogo quando tratamos do sistema tributário brasileiro e porque ele sobrecarrega a renda das famílias mais pobres.
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No último ano, cerca de 33% do PIB, um terço da produção total do país, foi feita a partir de recolhimento de tributos. Com esse recurso, o Estado cumpre funções constitucionais como, por exemplo, avançar na garantia dos direitos sociais previstos no Art. 6: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados.
A carga tributária é a principal forma de arrecadação do governo, utilizada não só no Brasil, como em diversos países das sociais democracias europeias para promover condições básicas de sobrevivência para a população.
Dão Real explica que o sistema tributário é “um instrumento que pode viabilizar ou inviabilizar a implementação do Estado de bem-estar social”, instituído no Brasil com a Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, a estrutura tributária dita as regras de como serão arrecadados os tributos para custear serviços e políticas públicas universais, como o Sistema Único de Saúde (SUS).
Injustiça tributária
Todos os brasileiros pagam tributos, ou impostos, em quase tudo que compram, vendem ou consomem. Em geral, os tributos incidem sobre as bases do consumo, da renda e do patrimônio de pessoas e empresas. No entanto, mais da metade de tudo que o país arrecada em tributos é pago pelo consumidor.
Na prática, a tributação sobre determinada mercadoria é igual para quem ganha muito e quem ganha pouco. O resultado é que, ao contrário dos mais ricos, as famílias mais pobres acabam pagando mais porque gastam toda sua renda adquirindo produtos de primeira necessidade como alimentação e vestuário.
Para Dão Real, o modelo de arrecadação em vigor penaliza os mais pobres ao ferir o princípio da justiça tributária. Isso porque o sistema brasileiro é centrado em tributos indiretos, sobre o consumo, que estão no preço de tudo que compramos.
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“Se o pobre gasta toda sua renda no consumo e o rico gasta apenas uma parte da sua renda, em relação à renda total, o tributo sobre consumo onera mais o mais pobre. O mais rico gasta 10% da sua renda no consumo. Aqueles 10% da renda no consumo paga o mesmo tributo que o pobre em 100% da sua renda”, explica o vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF).
Em torno de 60% de tudo que o país arrecada é pago pelo consumidor porque está embutido no preço dos produtos e serviços. Somente 20% incide sobre renda e apenas 4% sobre patrimônio. Outro "efeito perverso" do sistema fiscal é "dar com uma mão e tirar com a outra", aponta Dão.
"Se eu cobro mais tributos dos pobres e devolvo políticas sociais para os pobres, o resultado é zero a zero. A capacidade do Estado de promover redução de desigualdades, promover o desenvolvimento econômico, fica limitada porque estou tirando dinheiro justamente daqueles que podem consumir e aumentar a demanda da indústria".
Como a tributação sobre renda e patrimônio representa uma fatia menor da tributação, a parcela que sobra da renda dos mais rico é menos tributada. Assim, o sistema tributário reproduz desigualdades. "Por isso que o mais rico paga menos tributo que o mais pobre, proporcionalmente, a renda de cada um”, complementa.
Atraso
A atual configuração tributária vai na contramão de países desenvolvidos. Em relação a países como Estados Unidos e Canadá, a estrutura do sistema brasileiro é invertida. Isso significa que ao aumentar a alíquota sobre grandes fortunas, patrimônios e heranças, esses países conseguiram reduzir a tributação sobre consumo e desonerar os mais pobres.
“O sistema tributário nesses países são progressivos, ou seja, quando a gente cobra tributo reduz desigualdades. No Brasil, acontece ao contrário, quando a gente cobra tributos aprofundamos desigualdades. Essa é uma injustiça do sistema”, constata Dão. O que de fato pode trazer mudanças nesse quadro é a tributação sobre rendimentos, por exemplo, nas alíquotas do Imposto de Renda. A discussão desse tema está prevista para uma segunda etapa da reforma.
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Historicamente, o sistema tributário sofreu retrocessos que beneficiaram as classes dominantes. Já no ano seguinte da promulgação da Constituição, o imposto de renda da pessoa física abaixou de sete alíquotas progressivas até 45% para duas de máximo 25%. Depois, foram implementados dois artigos na Lei 9.249/95 que tornaram isentos de imposto lucros e dividendos distribuídos.
Para Dão Real, a retirada dos super-ricos da tributação serve para inviabilizar os objetivos constitucionais e encontra resistência até os dias de hoje pelo mesmo motivo. Em linhas gerais, os setores mais ricos estariam sinalizando desde os anos 1990 não estarem dispostos a financiar o Estado de bem-estar social. Como consequência, o Estado aumenta a tributação sobre o consumo e rebaixa o imposto de renda para faixas mais baixas.
"Quem ganha lucros e dividendos são as pessoas de mais alta renda. Quem ganha salário são as pessoas de baixa renda. Quem têm grandes riquezas, a partir de 1995 passou a não pagar mais imposto de renda. De novo nós tiramos da conta os mais ricos", finaliza Dão.
Descomplicando o sistema fiscal
Tributos - São valores arrecadados pelo Estado para custear direitos constitucionais como saúde e educação. Podem ser cobrados na forma de imposto, taxa ou contribuição.
Imposto - É o tributo mais importante cobrado pelo Estado para financiar gastos sociais e serviços públicos. No Brasil, temos impostos federais, estaduais e municipais.
Sistema tributário - Conjunto de regras que estabelece como os tributos, ou impostos, serão arrecadados.
Alíquota - Quota ou percentual usado para calcular o valor final de um imposto que deve ser pago.
Imposto de renda - Existe em diversos países, o imposto sobre rendimento é o principal imposto dos Estados de bem-estar social porque permite cobrar mais de quem tem mais.
Edição: Mariana Pitasse