O texto da reforma tributária, que deve ser votado na Câmara dos Deputados nesta quinta-feira (6), representa um avanço com a sinalização de um imposto especial para produtos e bens que fazem mal à saúde, mas é preocupante no que diz respeito à tributação de alimentos.
Essa é a percepção de organizações da sociedade civil, que defendem a chamada Reforma 3s - Saudável, Solidária e Sustentável. O alerta é de que a proposta que tramita no Congresso pode aumentar os impostos sobre produtos in natura e conceder benefícios tributários à indústria de alimentos ultraprocessados.
“O texto como está, a nosso ver, é um desastre”, afirma o coordenador de Advocacy da ACT Promoção da Saúde, Marcelo Baird.
Ele ressalta que a aprovação da proposta atual pode trazer impactos na saúde da população e no combate à fome.
::Taxar alimentos ultraprocessados pode significar mais recursos para políticas sociais::
“Pode incentivar o alimento não saudável, o que vai produzir doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e até câncer. Ao mesmo tempo o alimento que chamamos de comida de verdade pode fica mais caro. Isso é gravíssimo no momento em que estamos vivendo uma situação de grave insegurança alimentar, com 33 milhões de pessoas passando fome.”
Baird também destacou a importância da reforma tributária na retomada das políticas de segurança alimentar, que foram desmontadas nos últimos anos. Ele pontuou que, se os preços dos alimentos se tornarem inviáveis, programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) terão dificuldades de implementação.
"Não adianta você ter políticas de compras governamentais, de alimentação escolar, se lá no início o preço vai estar absurdo, com acesso muito difícil pela população.”
Leia a entrevista a seguir e ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Quais são os pontos de alerta que a ACT traz em relação à reforma tributária?
Marcelo Baird: Nós estamos bastante preocupados com o texto substitutivo, que foi apresentado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP), que é o relator da reforma tributária na Câmara dos Deputados. Nós vínhamos defendendo uma coisa muito simples, nosso mantra é de que os alimentos saudáveis devem ficar mais baratos e acessíveis à população e os alimentos nocivos à saúde, os ultraprocessados ficar mais caros, para desincentivar o seu consumo.
Ficamos muito preocupados com o texto que saiu, porque ele faz o oposto disso. Por um lado, ele aumenta os impostos para vários produtos in natura. Estamos falando de hortaliças, frutas, ovos. Por outro, ele reduz impostos para vários ultraprocessados, como biscoitos, achocolatados, macarrão instantâneo.
O texto como está, a nosso ver, é um desastre. Pode piorar muito a situação. Pode incentivar o alimento não saudável, o que vai produzir doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e até câncer. Ao mesmo tempo, o alimento que chamamos de comida de verde pode ficar mais caro.
Isso é gravíssimo no momento em que estamos vivendo uma situação de grave insegurança alimentar, com mais da metade da população, com 33 milhões pessoas, passando fome.
O Brasil viveu alguns avanços na questão da segurança alimentar, a partir do fim da década de 1990, que foram desmontados de 2016 para cá. Em que medida a reforma tributária pode ser um obstáculo para a retomada dessas políticas?
Tem pouca gente olhando para isso, inclusive dentro do governo, o que nos tem preocupado muito. Obviamente tem esses programas, que foram vitrines dos governos petistas e foram desmontados, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que deve ser votado nesta semana e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que teve reajuste, realizado há pouco tempo pelo governo Lula, porque estava com os valores muito defasados.
Então, estamos retomando essas políticas, que são fundamentais. Mas mesmo frações do governo não estão olhando para a reforma tributária. Não adianta você ter políticas de compras governamentais, de alimentação escolar, se lá no início o preço vai estar absurdo, com acesso muito difícil pela população.
Se o preço tiver muito caro, podemos voltar a ter problema de inflação de alimentos e pode ficar difícil até para implementar esses programas. Mesmo se pensarmos em programas de auxílio de apoio técnico a agricultores, nada disso vai poder ser implementado com sucesso se você tiver um preço inviável na compra de alimentos.
Então, sim, a reforma tributária é central nessa retomada das políticas e, como está hoje ela é muito preocupante.
Já temos distorções tributárias em relação à alimentação no Brasil. Um exemplo é a isenção e o incentivo para a produção de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. A reforma tributária, como está hoje, corrige essas distorções?
Na Zona Franca de Manaus, a indústria de refrigerantes não só não paga imposto, como ainda recebe créditos tributários. São realmente incentivados. Esse caso específico é preocupante porque a Zona Franca de Manaus permanece intacta pelo texto apresentado pelo relator. Não estamos aqui falando nada contra a Zona Franca de Manaus, de forma alguma. A questão é justamente aproveitar o momento da reforma tributária para pensar que país queremos e que setores devem ser incentivados.
Não parece fazer muito sentido que uma indústria de refrigerantes, um produto que faz mal à saúde, seja incentivado. Ainda mais na Zona Franca de Manaus. Não tem qualquer sentido, nem benefícios sociais são gerados, a quantidade de empregos é baixíssima.
Esse problema deve permanecer e outros devem ser agravados. Porque, com essas mudanças que mencionei antes, é possível que ainda haja alguma previsão de uma alíquota menor para alimentos in natura, só que hoje vários deles são zerados. Mesmo que tenha uma previsão de uma alíquota menor, hoje eles são zerados, então deve aumentar impostos para eles.
Outros alimentos minimamente processados, por exemplo um suco de fruta natural, não vão ter nenhum tipo de benefício. Não tem realmente qualquer cabimento como a coisa está colocada. As distorções podem ser agravadas se não mudarmos nada nesta semana.
A ACT Promoção da Saúde é uma das organizações que defende a Reforma 3S, texto que propõe uma reforma tributária saudável, solidária e sustentável. O movimento de defesa deste texto tem atuado nos debates da Câmara dos Deputados. Como seguirá essa atuação nos próximos passos da tramitação?
O primeiro ponto é que nós queremos fazer o melhor possível neste texto que deve ser votado nesta semana no plenário da Câmara. Ficamos muito decepcionados, porque o debate tem sido muito fechado. O próprio relator disse que vai apresentar um novo texto, mas só vai revelar o novo substitutivo na hora de ser votado em plenário.
Então, não temos acesso ao que está acontecendo. A sociedade civil está alijada dessa discussão, em um debate importantíssimo para o país.
Na Reforma 3S estamos atuando para tentar transformar o Brasil em um país mais solidário, com menos desigualdade social, mais saudável, com mais saúde para a população e mais sustentável e não conseguimos sequer ter acesso ao texto para ser discutido.
Estamos todos nesse movimento em Brasília, trabalhando para melhorar o texto ainda nesta semana, para sair com um texto melhor da Câmara.
No campo do S do Saudável, temos defendido não só a revisão do texto que está colocado para a alimentação, para cesta básica, mas também um imposto seletivo sobre produtos nocivos tanto à saúde, como ao meio ambiente.
Esse texto já está previsto no substitutivo que foi apresentado. Ainda assim, há muita pressão contrária. Estamos muito atentos a isso. A discussão ficou para depois, também por causa da pressão empresarial. Produtos como tabaco, bebidas alcoólicas, alimentos ultra processados, agrotóxicos, todo esse debate está ficando para depois.
Estamos tentando garantir que esse imposto seletivo esteja lá, que se revise as normas alimentação e se vede subsídios a esse tipo de produto prejudicial à saúde. Outra proposta que temos defendido é que se vincule os recursos desses impostos ao SUS, para fortalecer o nosso sistema de saúde.
Seguimos defendendo todas essas propostas e várias outras dos outros S. Entramos na pressão aqui em Brasília nesta semana. Vamos torcer para conseguir mudar e ter o melhor texto possível para depois, na volta do recesso parlamentar, seguirmos com a discussão de forma mais aberta, como a sociedade espera, no Senado Federal.
Edição: Leandro Melito