Eglê estava em casa com quatro filhos pequenos, no bairro Agronômica, em Florianópolis, quando vieram prendê-la. Era abril de 1964, dias após o golpe civil-militar. O marido, o escritor Salim Miguel, já estava detido. Uma vizinha veio socorrer os pequenos. Para distraí-los, levou-os a passear de kombi pela ponte Hercílio Luz, no centro da capital catarinense. Acontece que Sônia, então com perto de seis anos, tinha muito medo da ponte: “Era de madeira e de vez em quando os pneus saiam dos trilhos. Eu tinha pavor. Então veja que para me distrair da prisão da mãe, fui levada para um lugar que me dava muito medo. Quando voltamos para casa, a mãe já não estava mais”, conta Sônia Malheiros Miguel.
Eglê Malheiros completou 95 anos neste 3 de julho. Vive em Brasília com a filha Sônia e está cercada também de cuidados dos outros quatro filhos: Veet Vivarta, Antônio Carlos, Paulo Sérgio e Luis Felipe Miguel. Muitos netos e bisnetos. Uma família que cresceu acompanhando a trajetória de luta da mãe militante comunista, poeta, professora, editora, roteirista, tradutora e única mulher a participar de todo o percurso do Círculo de Arte Moderna, mais conhecido como Grupo Sul, coletivo que marcou as artes catarinenses entre os anos 1940 e 1950.
A coerência política de Eglê não deixa margem para dúvidas: quase um século de luta pela democracia e a consciência da realidade que vivemos hoje no Brasil ainda muito potente. “Uma dose de história não faz mal a ninguém”, reflete ela em entrevista ao documentário “Eglê” (Prêmio Catarinense de Cinema 2019/FCC/ANCINE/FSA), com produção da Margot Filmes e coprodução da Lilás Filmes e Calendula Filmes. O filme, junto ao Projeto Acervo Eglê, desenvolvido por Gabi Bresola e Leila Pessoa, da Ombu produção, terá duas sessões no dia 12 de julho, no Museu da Escola Catarinense (MESC), em Florianópolis, dentro das homenagens pelos seus 95 anos.
“Em síntese, mais do que olhar pelo retrovisor, o material de memória aqui apresentado estimula a reflexão e a ação em um país cujo presente segue fortemente contaminado pelo autoritarismo, pelo ódio, pelo negacionismo e pela desinformação”, apontam os filhos em texto escrito para o Projeto Acervo Eglê.
Precursora e militante desde muito cedo
Precursora em diversas áreas, como ter sido roteirista, junto ao companheiro Salim Miguel, do primeiro longa-metragem filmado em Santa Catarina (O preço da ilusão, de 1958), Eglê Malheiros nasceu em Tubarão, no Sul catarinense, em 1928, mas logo em seguida a família mudou-se para Lages, na Serra. É a primeira de quatro irmãos. Em 1932, seu pai, Odílio Cunha Malheiros, advogado, diretor do jornal A Defesa, militante da então Aliança Liberal, foi assassinado por motivações políticas. No mesmo ano, a mãe de Eglê, Rita da Costa Ávila Malheiros, se transfere para Florianópolis com os quatro filhos pequenos.
Eglê cresceu em Florianópolis e desde muito menina desenvolveu o gosto pela leitura, pelo conhecimento nas várias áreas, pela militância. Ainda no ginásio, adolescente, no início dos anos 1940, escreveu um texto sobre Getúlio Vargas e foi censurada, como conta no documentário, “pois falava em democracia e eleições”.
Estudou em Porto Alegre, em Joinville e começou a lecionar ainda muito jovem. Ao retornar a Florianópolis, com 18 anos, cursou a Faculdade de Direito de Santa Catarina e foi a primeira mulher a se formar em Direito no estado. Também aos 18 anos, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), espaço no qual já militava anteriormente e onde exerceu grande influência. Sua mãe, Rita, também era filiada ao PCB e chegou a ser candidata a deputada federal nas eleições de 1947.
Foi também neste período, no final dos anos 1940, que Eglê construiu, com outros companheiros de diversas áreas das artes, o Círculo de Arte Moderna, mais conhecido como Grupo Sul. Sua atuação foi muito potente: Eglê foi a única mulher a participar do Grupo Sul durante toda sua trajetória que envolve teatro, cinema, artes plásticas, a Revista Sul e as publicações das Edições Sul. Eglê Malheiros assina inúmeros textos nas edições da Revista Sul, onde também atuava em várias funções.
Em 1952, pelas Edições Sul, publica seu primeiro livro de poemas intitulado Manhã.
Ditadura interrompeu a carreira que Eglê amava: o magistério
Professora concursada do Instituto Estadual de Educação (na época, em 1948, então Instituto de Educação Dias Velho), lecionou História Geral, História do Brasil e História de Santa Catarina. Foi presa em Florianópolis por cerca de 50 dias em abril de 1964, logo após o golpe civil-militar, e impedida de continuar lecionando até 1979. Durante 1965 e 1979, a família de Eglê Malheiros e Salim Miguel viveu no Rio de Janeiro, onde Eglê, além de mãe e dona de casa, cuidando dos cinco filhos, trabalhou como tradutora, roteirista de cinema e na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da qual foi diretora-secretária. Foi, também, uma das editoras da revista Ficção (1976/79). Foi no Rio de Janeiro, nesta época, que fez Mestrado em Comunicação na UFRJ.
Em 1979, após a anistia, a família retorna a Florianópolis. Eglê retoma a atuação no magistério, no IEE, por mais dois anos, e se aposenta na sequência. Em 1986, é candidata a Deputada Constituinte pelo PCB.
Em sua produção literária publicada estão também o livro infantil Desça, menino (1985), Vozes veladas (1996) e Os meus fantasmas (2002). Além disso, Eglê possui inúmeras publicações em coletâneas e obras coletivas. Assinou uma coluna no Diário Catarinense durante diversos anos. Continuou participando ativamente da vida cultural, social e política em Santa Catarina, embora não mais filiada a partido, mas posicionando-se sempre na coerência por uma sociedade digna e de direitos para todos.
Em sua residência, em Florianópolis, junto ao marido Salim Miguel, recebeu com generosidade muitas e muitas pessoas que pesquisavam a trajetória do Grupo Sul, a sua própria história e os temas aos quais sempre dedicou a vida. Os traços de generosidade e coerência política são registros muito fortes de todas as pessoas que falam sobre Eglê Malheiros. Em meados dos anos 2010, mudou-se para Brasília com o marido, Salim, por necessidade de cuidados médicos. Salim faleceu em 2016, depois de 64 anos de casamento com Eglê.
Ela recebeu a equipe do documentário Eglê (82 minutos), formada só por mulheres, em 2018 e 2021, com muita alegria e a mesma coerência que marca seu percurso. Eglê Malheiros deu opiniões sobre o documentário, foi assistindo trechos durante a montagem e repercutiu seu olhar sobre o processo com a equipe. O telefilme já está pré-licenciado pela Cine Brasil TV, um canal dedicado à produção audiovisual nacional independente.
Mais de três mil itens compõem o Acervo Eglê
Além do documentário, está em andamento o Projeto Acervo Eglê, conduzido pelas artistas visuais Gabi Bresola e Leila Pessoa, da equipe de tratamento arquivístico do documentário Eglê.
“Durante o processo de pesquisa e tratamento dos arquivos para o filme, percebemos o tanto de material histórico incrível que Eglê Malheiros guardou. Desenvolvemos então o Projeto Acervo Eglê com a finalidade de triagem, higienização, catalogação, classificação, pequenos restauros de conservação preventiva, digitalização e acondicionamento do acervo de mais de três mil itens, entre manuscritos, originais, documentos e fotografias. O trabalho está em realização em parceria com o IDCH/FAED”, conta Gabi Bresola.
Além do tratamento arquivístico, que teve início em janeiro de 2023, o projeto prevê uma publicação em formato digital com textos e imagens, uma plataforma para acesso público e uma oficina que foi realizada no dia 24 de junho para produção de publicações de artista a partir do acervo.
Os resultados da oficina e também itens do acervo estarão expostos no dia 12 de julho, no MESC, em um conjunto de homenagens que inclui a projeção do documentário. O projeto Acervo Eglê conta com recursos do Edital do Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis (0623/21), é realizado pela Ombu produção e tem parceria cultural do IDCH/Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas, onde o acervo será acondicionado, FAED/UDESC e Instituto Meyer Filho.
Edição: Rodrigo Durão Coelho